A notícia do assassinato de Osama Bin Laden oferece um sinal a mais dentre os muitos que ilustram a profunda crise moral da “civilização ocidental e cristã” que os Estados Unidos dizem representar
Por Atilio A. Boron [04.05.2011 13h20]A notícia do assassinato de Osama Bin Laden oferece um sinal a mais dentre os muitos que ilustram a profunda crise moral da “civilização ocidental e cristã” que os Estados Unidos dizem representar. Para além da rejeição que nos provocava o personagem e seus métodos de luta, a natureza da operação levada a cabo pelos seals da Armada dos Estados Unidos é um ato de inqualificável barbárie perpetrado sob as ordens diretas de um personagem que com suas condutas cotidianas desonra a atribuição que lhe outorgou o Parlamento norueguês ao consagrá-lo como Prêmio Nobel da Paz do ano de 2009. De acordo com o estabelecido por Alfred Nobel em seu testamento esta distinção, devemos recordar, devia ser concedida “à pessoa que mais ou melhor trabalhou em favor da fraternidade entre as nações, a abolição ou redução dos exércitos existentes e a celebração e promoção de processos de paz.” O energúmeno que anunciou ao povo estadunidense a morte do líder da Al-Qaeda dizendo que “a justiça foi feita” é a antítese perfeita do estipulado por Nobel. Um comando operativo é o menos parecido ao devido processo, e lançar os restos de sua vítima ao mar para ocultar os vestígios do que se fez é ato próprio de mafiosos ou genocidas. O mínimo que deveria fazer o Parlamento norueguês é exigir que ele devolva o prêmio.
Na truculenta operação encenada nos arredores de Islamabad há múltiplas interrogações que permanecem nas sombras, e a tendência do governo dos Estados Unidos a desinformar a opinião pública torna ainda mais suspeita esta operação. Uma Casa Branca vítima de uma doentia compulsão por mentir (lembrar a pequena história das “armas de destruição em massa” existentes no Iraque, ou o infame Informe Warren que sentenciou que não houve conspiração no assassinato de Kennedy, obra do “lobo solitário” Lee Harvey Oswald) nos obriga a analisar com cuidado cada uma de suas afirmações. Era Bin Laden ou não? Por que não pensar que a vítima poderia ser qualquer outro? Onde estão as fotos, as provas de que o falecido era o procurado? Se foi tirada uma prova de DNA, como ela foi obtida, onde estão os resultados e quem foram as testemunhas? Por que este teste não foi apresentado perante consideração pública, como se fez, sem ir mais longe, com os restos do comandante Ernesto “Che” Guevara? Se, como se assegura, Osama se ocultava numa mansão convertida numa verdadeira fortaleza, como é possível que em um combate que se estendeu durante 40 minutos os integrantes do comando estadunidense regressaram à sua base sem receber sequer um arranhão? Tão pouca pontaria teriam os defensores do fugitivo mais procurado do mundo, do qual se falava que possuía um arsenal de armas mortíferas de última geração? Quem estava com ele? Segundo a Casa Branca o comando matou Bin Laden, seu filho, outros dois homens sob sua tutela e uma mulher que, asseguram, foi intimada a ser utilizada como escudo humano por um dos terroristas. Também se disse que mais duas pessoas ficaram feriados no combate. Onde estão, e o que vai ser feito delas? Serão levadas a julgamento, darão depoimento para lançar alguma luz sobre o ocorrido, falaram em uma coletiva de imprensa para narrar o acontecido? Pelo que parece esta “proeza” passará à história como uma operação mafiosa, ao estilo da matança de San Valentín ordenada por Al Capone para liquidar os capangas do lado rival.
Osama vivo era um perigo. Se sabia (ou sabe) demasiadamente, e é razoável supor que a última coisa que o governo estadunidense queria era levá-lo a julgamento e deixá-lo falar. Neste caso seria desatado um escândalo de enormes proporções ao revelar as conexões com a CIA, os armamentos e o dinheiro investido pela Casa Branca, as operações ilegais montadas por Washington, os obscuros negócios de sua família com o lobby petroleiro estadunidense e, muito especialmente, com a família Bush, entre outras trivialidades. Em suma, um testemunho que haveria de ser silenciado de qualquer forma, como Muammar Gadafi. O problema é que já morto, Osama se converte para os jihadistas islâmicos em um mártir da causa, e o desejo de vingança seguramente impulsionará às muitas células adormecidas da Al-Qaeda a perpetrar novas atrocidades para vingar a morte de seu líder.
Tampouco deixa de chamar a atenção o quão oportuna foi a morte de Bin Laden. Quando o incêndio da seca na pradaria do mundo árabe desestabiliza uma área de crucial importância para a estratégia de dominação imperial, a notícia do assassinato de Bin Laden reinstala a Al-Qaeda no centro do cenário. Se há algo que a esta altura é uma verdade irrefutável é que essas revoltas não respondem a nenhuma motivação religiosa. Suas causas, seus sujeitos e suas formas de luta são eminentemente seculares e em nenhuma delas – desde Tunísia ao Egito, passando por Líbia, Barein, Iêmen, Síria e Jordânia – o protagonismo recaiu sobre a Irmandade Muçulmana ou Al-Qaeda. O problema é o capitalismo e os devastadores efeitos das políticas neoliberais e os regimes despóticos que ele instalou nestes países e não as heresias dos “infiéis” do Ocidente. Mas o imperialismo estadunidense e seus capangas na Europa aguardaram, desde o princípio, para fazer aparecer estas revoltas como produto da malícia do radicalismo islâmico e Al-Qaeda, coisa que não é certa. Santiago Alba Rico observou com razão que em pleno auge destes protestos seculares – anti-políticas de ajuste do FMI e do Banco Mundial – um grupo fundamentalista desconhecido até então assassinou o cooperante italiano Vittorio Arrigoni, ativista do Movimento de Solidariedade Internacional, em uma casa abandonado na Faixa de Gaza. Poucas semanas depois, um terrorista suicida estourou uma bomba na praça Yemaa el Fna, um dos destinos turísticos mais notáveis não só do Marrocos, mas de toda a África, e mata ao menos 14 pessoas. “Agora – continua Alba Rico – reaparece Bin Laden, não vivo e ameaçador, mas com toda a glória de um martírio adiado, estudado, cuidadosamente encenado, um pouco inverossímil. “A justiça foi feita, disse Obama, mas a justiça exige tribunais e juízes, procedimentos sumários, uma sentença independente.” Nada disso ocorreu, nem ocorrerá. Mas o fundamentalismo islâmico, ausente como protagonista das grandes mobilizações do mundo árabe, aparece agora em primeiro plano em todos os jornais do mundo e seu líder como mártir do Islã assassinado a sangue frio pela tropa do líder do Ocidente. A Casa Branca, que sabia desde meados de fevereiro deste ano que nesta fortaleza nos arredores de Islamabad se refugiava Bin Laden, esperou o momento oportuno para lançar seu ataque tendo em vista posicionar favoravelmente Barack Obama na iminente campanha eleitoral pela sucessão presidencial.
Há um detalhe nada anedótico que torna ainda mais imoral a bravata estadunidense: poucas horas depois de ser abatido, o cadáver do presumido Bin Laden foi lançado ao mar. A mentirosa declaração da Casa Branca diz que seus restos foram sepultados respeitando as tradições e os ritos islâmicos, mas não é bem assim. Os ritos fúnebres do Islã estabelecem que se deve lavar o cadáver, vesti-lo com uma mortalha, proceder com uma cerimônia religiosa que inclui orações e honras fúnebres para logo em seguida seguir para o enterro do defunto. Além disso, se especifica que o cadáver deve ser depositado diretamente na terra, recostado sobre seu lado direito, e com a face dirigida à Meca. Com que pressa tiveram que ser feitos o combate, a recuperação do cadáver, sua identificação, a obtenção do DNA, o traslado em um navio da Armada estadunidense, situado a pouco mais de 600 km do subúrbio de Islamabad onde se produziu o enfrentamento e finalmente navegar até o ponto onde o cadáver foi lançado ao mar para respeitar os ritos fúnebres do Islã? Na realidade, o que se fez foi abater e “desaparecer” com uma pessoa, presumidamente Bin Laden, seguindo uma prática sinistra utilizada sobretudo pela ditadura genocida que assolou a Argentina entre 1976 e 1983. Ato imoral que não somente ofende às crenças muçulmanas, mas também uma milenar tradição cultural do Ocidente, anterior inclusive ao cristianismo. Como o atesta magistralmente Sófocles em Antígona, privar um defunto de sua sepultura acende as mais amargas paixões. Estas que hoje devem estar incendiando as células do fundamentalismo islâmico, desejosas de castigar os infiéis que ultrajaram o corpo e a memória de seu líder. Barack Obama acaba de dizer que depois da morte de Osama Bin Laden o mundo é um lugar mais seguro para se viver. Equivoca-se de pouco em pouco. Provavelmente sua ação não fez senão despertar um monstro que estava adormecido. O tempo dirá se assim será ou não, mas sobram razões para ficarmos preocupados.
Publicado originalmente em http://rebelion.org/noticia.php?id=127653. Tradução de Cainã Vidor. Foto de http://www.flickr.com/photos/jthetzel/.
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