quarta-feira, 4 de maio de 2011

Robert Fisk: Paquistão sabia onde Osama se escondia

3 de maio de 2011 às 18:33
Robert Fisk: Was he betrayed? Of course. Pakistan knew Bin Laden’s hiding place all along
Tuesday, 3 May 2011

No Independent

Um zé-ninguém de meia idade, um fracasso político despido pela história — por milhões de árabes que exigem liberdade e democracia no Oriente Médio — morreu no Paquistão ontem. E então o mundo enlouqueceu.
Logo depois de ter providenciado para nós uma cópia de sua certidão de nascimento, o presidente americano apareceu no meio da noite para providenciar um certidão de morte para Osama bin Laden, morto em uma cidade batizada com o nome de um dos exércitos do velho Império Britânico. Um único tiro na cabeça, nos disseram. Mas o vôo secreto do corpo para o Afeganistão e um sepultamento secreto no mar? O estranho e arrepiante destino do corpo — sem túmulos, por favor — foi tão assustador quanto o homem e sua organização
Os americanos ficaram bêbados de prazer. David Cameron falou num “massivo passo adiante”. A Índia descreveu como “um marco vitorioso”. “Um triunfo retumbante”, se gabou o primeiro-ministro israelense Netanyahu. Mas depois dos 3.000 americanos mortos no 11 de setembro e outros mais, sem conta, no Oriente Médio, até meio milhão de muçulmanos mortos no Iraque e no Afeganistão e dez anos de tentativas de achar bin Laden, rezemos para que não haja mais “triunfos retumbantes”. Ataques de vingança? Talvez eles venham de pequenos grupúsculos do Ocidente sem contato com a al-Qaeda. Com certeza tem alguém pensando numa Brigada do Mártir Osama bin Laden. Talvez no Afeganistão, entre os talibã.
Mas as revoluções de massa no mundo árabe nos últimos quatro meses significam que a al-Qaeda estava politicamente morta. Bin Laden disse ao mundo — na verdade, me disse pessoalmente — que queria destruir os regimes pró-ocidentais do mundo árabe, as ditaduras dos Mubaraks e dos Ben Alis. Ele queria criar um novo Califado Islâmico. Mas nos últimos meses, milhões de muçulmanos árabes se levantaram e estavam preparados para seu próprio martírio — não pelo islã, mas por liberdade e democracia. Bin Laden não se livrou dos tiranos. O povo, sim. E o povo não queria um califa.
Encontrei o homem três vezes e fiquei com apenas uma pergunta sem resposta: o que ele pensava enquanto assistia às revoluções que surgiram este ano — sob as bandeiras de nações em vez da do Islã, feitas por cristãos e muçulmanos juntos, o tipo de gente que os homens da al-Qaeda estavam prontos para assassinar?
Segundo seus próprios olhos, a conquista de bin Laden tinha sido a criação da al-Qaeda, a instituição que não tinha membros de carteirinha. Você simplesmente acordava de manhã, queria ser da al-Qaeda — e era. Mas ele nunca foi um guerreiro. Não havia computador em sua caverna, nem ligações telefônicas para detonar bombas. Enquanto os ditadores árabes governavam sem contestação com nosso apoio, se negavam a condenar a política americana; somente bin Laden fazia isso. Os árabes nunca quiseram jogar aviões contra prédios altos, mas admiravam um homem que dizia o que eles gostariam de dizer. Mas agora, cada vez mais, eles podem dizer essas coisas. Não precisam de bin Laden. Ele tinha se tornado um zé ninguém.
Mas, falando em cavernas, o sumiço de bin Laden traz o Paquistão para um foco desconfortável. Por meses, o presidente Ali Zadari nos dizia que bin Laden vivia em uma caverna no Afeganistão. Agora sabemos que ele estava morando numa mansão no Paquistão. Traído? Naturalmente que foi. Pelos militares do Paquistão e pelo Inter-Services Intelligence [serviço de inteligência] do Paquistão? Possivelmente pelos dois. O Paquistão sabia onde ele estava.
Abbottabad era não apenas sede do colégio militar do país — a cidade foi fundada pelo major James Abbott, do Exército Britânico, em 1853 — mas é também sede do quartel-general da Segunda Divisão do Exército Norte do Paquistão. Cerca de um ano atrás, tentei entrevistar outro “mais procurado” — o líder do grupo que teria sido responsável pelos massacres de Mumbai. Eu o encontrei na cidade paquistanesa de Lahore — guardado por policiais paquistaneses, sem uniforme, com metralhadoras nas mãos.
Naturalmente, há uma questão mais óbvia sem resposta: os americanos poderiam ter capturado bin Laden? A CIA, os Seals da Marinha, as forças especiais dos Estados Unidos ou qualquer que tenha sido o grupo que matou bin Laden, eles não tinham meios de jogar uma rede sobre o tigre? “Justiça”, Barack Obama chamou o acontecimento. Nos velhos tempos, naturalmente, “justiça” significava um processo, um tribunal, uma audiência, uma defesa, um julgamento. Como os filhos de Saddam, bin Laden foi assassinado. Certo, ele nunca queria ter sido preso — e havia baldes de sangue no quarto onde morreu.
Mas um julgamento preocuparia mais gente que bin Laden. Afinal, ele poderia ter falado sobre seus contatos com a CIA durante a ocupação soviética do Afeganistão, ou sobre seus encontros amigáveis em Islamabad com o príncipe Turki, o chefe da inteligência da Arábia Saudita. Como Saddam — que foi julgado pela morte de meros 153, em vez dos milhares de curdos que matou com gás — foi enforcado antes de ter uma chance de falar sobre os componentes do gás que vieram dos Estados Unidos, sobre sua amizade com Donald Rumsfeld,  sobre a assistência militar que recebeu dos Estados Unidos quando invadiu o Irã, em 1980.
Estranhamente, bin Laden não era o “mais procurado” pelos crimes internacionais contra a humanidade do 11 de setembro de 2001. Ele ganhou o status do Velho Oeste por conta dos ataques anteriores contra as embaixadas dos Estados Unidos na África e contra o quartel dos Estados Unidos em Dhahran [Arábia Saudita]. Bin Laden estava sempre esperando pelos mísseis de cruzeiro — eu também, quando o encontrei. Ele tinha esperado pela morte antes, nas cavernas de Tora Bora, em 2001, quando os guarda-costas não permitiram que ele se levantasse e lutasse e o forçaram a atravessar as montanhas do Paquistão. Parte do tempo bin Laden passava em Karachi — ele era obcecado por Karachi; estranhamente, ele me deu duas fotografias de pichações pró-bin Laden nas paredes da ex-capital paquistanesa e elogiou os imans da cidade.
As relações de bin Laden com outros muçulmanos eram misteriosas; quando o encontrei no Afeganistão, ele inicialmente temia os talibã, se negando a permitir que eu viajasse para Jalalabad de seu campo de treinamento, à noite — me entregou para que subordinados da al-Qaeda me protegessem na jornada do dia seguinte. Seus seguidores odiavam os muçulmanos xiitas como heréticos e todos os ditadores como infiéis –embora ele estivesse preparado para cooperar com os ex-Baathistas do Iraque contra os invasores americanos e disse isso num audiotape que a CIA tipicamente ignorou. Bin Laden nunca elogiou o Hamas e nunca mereceu a definição dada por eles, ontem, de “guerreiro santo”, que como sempre caiu como uma luva para os interesses de Israel.
Nos anos pós-2001, mantive distante comunicação indireta com bin Laden, uma vez encontrando um de seus associados na al-Qaeda num lugar secreto do Paquistão. Escrevi uma lista de 12 perguntas, a primeria sendo óbvia: que tipo de vitória ele poderia declarar se suas ações tinham resultado na ocupação de dois países muçulmanos? Não houve resposta por semanas. Então, num fim de semana, esperando para dar uma palestra em Saint Louis, nos Estados Unidos, fui informado de que a Al Jazeera tinha divulgado um novo audiotape de bin Laden. E uma por uma — sem me mencionar — ele respondeu minhas 12 perguntas. E, sim, ele queria que os americanos viessem ao mundo muçulmano — assim poderia destruí-los.
Quando o jornalista Daniel Pearl, do Wall Street Journal, foi sequestrado, escrevi um longo artigo no Independent, pedindo a bin Laden que tentasse salvar a vida dele. Pearl e a mulher tinham me protegido quando fui espancado na fronteira afegã em 2001; Pearl até me deu os contatos da agenda dele. Muito mais tarde, fui informado de que bin Laden tinha lido meu texto com tristeza. Mas Pearl já tinha sido assassinado. Pelo menos foi o que ele disse.
Ainda assim, as próprias obsessões de bin Laden pesavam sobre a família. Um mulher o deixou, outras duas parece que foram mortas no ataque americano de domingo. Encontrei um dos filhos dele, Omar, no Afeganistão, com o pai, em 1994. Era um menino bonito e eu perguntei se ele era feliz. Ele disse “sim” em inglês. Mas, no ano passado, ele publicou um livro chamado “Vivendo com bin Laden”, relembrando como o pai matou um de seus cães favoritos em um experimento com agentes químicos de guerra. Descreveu-o como “homem diabólico”. No livro, o filho também relembrou nosso encontro; e concluiu que deveria ter dito que não, que ele não era uma criança feliz.
Até o meio dia de ontem, eu recebi três ligações de árabe, todos certos de que um dublê de bin Laden tinha sido morto pelos americanos — assim como sei que muitos iraquianos ainda acreditam que os filhos de Saddam não foram mortos em 2003, nem Saddam foi realmente enforcado. Com certeza a al-Qaeda vai nos informar. Naturalmente, se estivermos todos errados e tiver sido um dublê, seremos tratados com mais um vídeo de bin Laden — e o presidente Barack Obama perderá a próxima eleição.

http://www.viomundo.com.br/voce-escreve/fisk-paquistao-sabia-onde-osama-se-escondia.html

PS do Viomundo: Sem a experiência, a sagacidade e a sabedoria do Robert Fisk, o Viomundo disse a mesma coisa sobre o ocaso de bin Laden, aqui, ontem.

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