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sábado, 16 de junho de 2012

Copa do Mundo e Jogos Olímpicos: “O espetáculo e o mito”  Raquel Rolnik

14 Jun 2012
Há evidências empíricas de que sediar grandes eventos esportivos traz desenvolvimento econômico e social?

Traz ganhos. A discussão é: ganhos para quê? E ganhos para quem? Porque, sim, mobiliza uma enorme quantidade de dinheiro e de investimentos. Não há a menor dúvida de que esses grandes eventos transformaram-se, sobretudo a partir do final dos anos 1980, numa espécie de constituição de branding: uma marca que é vendida associada à marca de uma cidade e de um país. Portanto, todas aquelas empresas que se associam a essa marca também são automaticamente promovidas no mercado internacional. E é uma estratégia bem-sucedida, porque o evento é visto por bilhões de pessoas, uma oportunidade única para se comunicar com essa audiência ou com esse público consumidor. É disso que se trata: de corporações e grandes negócios, um grande evento de marketing e de marcas associadas a ele.
Claro que, dependendo da cidade, do contexto e do país, eventualmente esses momentos são utilizados também para realizar projetos que beneficiam não só as pessoas que vão usufruir do evento naquele momento, mas também outras pessoas a longo prazo. Basicamente, Barcelona ficou notabilizada por utilizar os Jogos Olímpicos para implementar um projeto de renovação urbanística e se recolocar no cenário internacional de cidades em um momento em que a gente vivia um processo muito radical de reestruturação produtiva com a globalização. Barcelona era uma cidade industrial e portuária e estava perdendo completamente o seu lugar, porque esse lugar da indústria não estava mais se sustentando economicamente. Ao mesmo tempo, a gente também vive nesse momento a grande era dos reajustes estruturais, da retirada do governo central e dos grandes investimentos públicos. As cidades começam a entrar num jogo de autopromoção no cenário internacional para atrair investimentos externos e promover uma reengenharia da sua base econômica.

Quando se discute o legado desses eventos, sempre se menciona Barcelona-92. Há algo que se compare na história dos Jogos Olímpicos e das Copas do Mundo?
Barcelona estabeleceu uma espécie de paradigma de que os Jogos sempre se associam a um legado de transformação urbanística. Mas os projetos de intervenção urbanística não são neutros. Tem beneficiários e tem prejudicados. É importante distinguir as duas coisas.
Quando se conta a história de Barcelona, separa-se a experiência específica dos Jogos Olímpicos da história imediatamente anterior. Para entender Barcelona, é preciso entender que mais de uma década antes (dos Jogos) a cidade ganhou um governo autônomo socialista, num movimento que era importantíssimo para a Catalunha, de afastamento do controle autoritário e centralizado do franquismo. Trata-se de uma luta democrática e popular que durante pelo menos uma década fez um investimento radical na melhoria das condições de vida dos trabalhadores e de suas periferias, investiu na melhoria das condições urbanísticas desses bairros populares, investiu na moradia, aumentou tremendamente o grau de participação popular na gestão da cidade. Então, quando Barcelona desenha o seu projeto olímpico, isso não veio do nada. Não se abriu o céu e caíram as Olimpíadas, como está acontecendo no Brasil. Mesmo assim, houve resistência, houve questionamento, houve luta, houve transformação da pauta de intervenção como consequência dessas lutas e desses questionamentos. Só que ninguém conta essa parte da história. Essa parte da história sumiu.

Então o grande paradigma de legado associado às Olimpíadas só aconteceu porque já existia uma trajetória independente do evento?

Evidentemente. Você pode ver o caso de Londres agora (sede das Olimpíadas de 2012). O projeto de Londres também tem uma história muito mais longa de integração, de intervenção no East End, historicamente a região com condições urbanísticas mais precárias. Além da construção de um grande parque público, a maioria dos equipamentos olímpicos será desmontada e, no seu lugar, vai ter habitação, comércio e serviços, com uma cota de 35% para habitação social subsidiada. E também no caso de Londres houve questionamento, também teve debate público e também o projeto foi transformado em razão disso.
Eu diria que onde já existe um processo público de debate e de intervenção territorial sobre a cidade, as Olimpíadas aparecem como uma oportunidade a mais dentro de um caminho para implantar esse plano. Onde não tem nada, cai do céu um projeto que não tem absolutamente nada a ver. O caso do Brasil é emblemático. As cidades brasileiras passaram, depois da aprovação do Estatuto das Cidades, no ano 2000, a elaborar projeto de plano diretor, de planejamento participativo, pensando no futuro dessas cidades. Esses planos e projetos estão todos na gaveta ou foram rasgados.
O grande projeto olímpico do Rio de Janeiro foi elaborado conjuntamente e quase que diretamente por incorporadores privados que vão lançar um enorme investimento imobiliário na Barra da Tijuca e em Jacarepaguá, região na qual a intervenção urbanística pelo setor privado já estava acontecendo. Não mudou nada. Ao contrário, reforça a centralidade da Zona Oeste, uma centralidade de classe média, para poucos. É a extensão da Zona Sul. Não é o Rio de Janeiro que mais precisa de uma intervenção urbanística, como os bairros centrais. Tem tudo a ver com processos de valorização privada e muito pouco com o interesse público e uma revisão de tendências, de modo que os elementos perversos que existem no nosso urbanismo precário pudessem ser revertidos.

O legado inequívoco é a exceção dentro do histórico de grandes eventos esportivos?

Exatamente. Tem que entender isso no âmbito do que aconteceu no mercado de terras e no mercado imobiliário, com a globalização. O mercado imobiliário internacional passou a ser uma parte fundamental do circuito financeiro. A gente viveu uma “financeirização” do processo de produção de moradia e de cidades. Isso significa – e isso a gente viu com a crise americana – que os ativos imobiliários, mais do que representarem um valor de uso para as cidades, são um ativo financeiro passivo de especulação. Veja o que é Dubai. São operações de abertura de frentes para atração desses capitais financeiros. O megaevento nada mais é que um estande de vendas, fantástico e imediato, ainda por cima associado ao espírito do esporte, da solidariedade entre os povos, do nacionalismo segundo o qual o país vai mostrar ao mundo do que é capaz. Associado a todos esses elementos, é muito mais poderoso.

De onde vem esse mito da bonança socioeconômica associada à Copa do Mundo ou às Olimpíadas?

Se a gente olhar para a história dos grandes Jogos, eles tiveram lá as suas fases. Eles começam a ter muita importância, do ponto de vista cultural e geopolítico, no pós-guerra, quando se tratava de um espaço de conciliação entre as nações. Logo em seguida, no período da Guerra Fria, era muito importante para ver quem ia ganhar. Se eram os Estados Unidos, portanto a visão do livre mercado capitalista, ou se era o bloco soviético, e, posteriormente, a China. Era um encontro de forças, um cenário de reafirmação da Guerra Fria.
As Olimpíadas começam a ser associadas a uma intervenção na cidade nos Jogos de Los Angeles, em 1984, quando se mobiliza pela primeira vez o capital corporativo para fazer investimentos na cidade de forma mais permanente. E, desde então, toma conta. É um espaço basicamente das corporações, mediado pelos comitês olímpicos e comitês organizadores da Copa do Mundo, portanto também dos governos.
E aí, crescentemente, surgem as operações com base no tal do legado e na transformação urbanística. Mas isso, como falei, coincide com dois fenômenos: a diminuição do papel dos Estados para atendimento de demandas urbanísticas e, consequentememte, a entrada do capital privado na gestão; e as cidades competindo na arena internacional globalizada para ver quem capta investimentos de um excedente financeiro que fica pairando sobre o planeta procurando onde se alocar. Os Jogos Olímpicos e as Copas do Mundo abrem um espaço para que esse investimento aconteça, especialmente pelo que carregam também de elementos simbólicos, com a vantagem de ser um ambiente de consenso. Todo mundo gosta, todo mundo acha legal.

É por isso que existe essa expectativa de um legado transformador, quando, na verdade, o saldo convincente para os interesses difusos é raríssimo?

É um espetáculo que mobiliza corações. A mobilização é real. Você não só assiste. Você torce, você sofre, você chora. O evento trabalha com esses sentimentos e por isso é tão consensual. Tudo que se associa ao evento é contaminado por esse mesmo espírito.
Por outro lado, quando você tem uma intervenção física, as pessoas enxergam que alguma coisa foi feita. Em muitos casos, há melhorias. Se você fizer o balanço de ganhos e perdas, a maior parte da população não ganha tanto e muito poucos ganham muito, mas há transformações reais. Na África do Sul, mesmo com todas as limitações, a ligação de corredor exclusivo de ônibus para Soweto muda completamente a vida de quem vive em Soweto. Não é imaginário.
Mas tem efeitos perversos que não são lembrados, que não são tocados. Falando como relatora da ONU para o direito à moradia adequada, e em geral para os direitos humanos: o foco principal dos direitos humanos são os mais vulneráveis. Esses deveriam ser os prioritários e, em geral, são os prejudicados. São os que acabam carreando os efeitos perversos.

Sobre o envolvimento da sociedade civil, mencionado pela senhora como fator preponderante para o sucesso de Barcelona: nós aqui no Brasil ainda temos tempo de fazer isso, considerando o horizonte de 2014?

Já começa por quem formulou o projeto olímpico. Quem participou dele? E do projeto das cidades para a Copa? Esses projetos são definidos a portas fechadas entre os agentes políticos e as corporações envolvidas com a produção do evento. Ponto. Tudo o que nós construímos no Brasil de participação popular, de conselhos, de planejamento participativo, está sendo completamente deixado de lado no momento de definição das obras para a Copa e para as Olimpíadas.

A senhora vê diferença na forma de condução desses processos entre países centrais e os menos desenvolvidos?

Uma coisa é você fazer uma grande operação de renovação urbanística quando um grau básico de urbanidade já foi conquistado, como era o caso de Barcelona, ou como é o caso de Londres. Drante 50 anos, Londres fez uma política muito forte de investimento em habitação social, com 30% de todos os empreendimentos obrigatoriamente produzindo habitação popular, e por isso conseguiu praticamente zerar as condições precárias de moradia.
Outra coisa é a situação do Brasil, ou de Nova Délhi, na Índia, onde aconteceram os Commonwealth Games. Parece-me que, no nosso caso, esse tal legado deveria ser totalmente dirigido para constituir esse grau básico de urbanidade ou pelo menos ir na sua direção. Mas não. O que a gente viu é que as pessoas que moravam em condições precárias foram simplesmente expulsas, suas casas destruídas e nenhuma alternativa apresentada. E nós estamos repetindo aqui no Rio de Janeiro, neste momento, a mesma coisa. Em outras cidades brasileiras também. É assim: “Aqui vai ter um estádio? Ah, beleza, vamos saindo, vamos tirando tudo fora”, sem respeitar os direitos dessas pessoas e sem equacionar devidamente as alternativas.

Segundo o seu relatório, os impactos quanto a moradia se repetem, sobretudo nos países menos desenvolvidos, em razão da urbanização precária?

Exatamente. Os impactos se repetem e são mais graves. Mas isso aconteceu em Atenas também.

Essa nova tendência de sediar a Copa do Mundo em países periféricos diz alguma coisa sobre a FIFA (Federação Internacional de Futebol)?

A Fifa vai aonde está o dinheiro. Eu pude testemunhar isso ao preparar um relatório sobre os megaeventos e o direito à moradia e apresentá-lo à ONU. Eu me dirigi, como relatora, ao Comitê Olímpico Internacional e à Fifa para poder discutir com eles, ver como é que eles tratavam essa questão. Eram denúncias que eu recebia sistematicamente de expulsões forçadas em massa, tanto em Pequim como em Nova Délhi, como em vários lugares da África do Sul. E com o COI eu consegui estabelecer uma conversa, entender como é o processo, começar uma interlocução. A Fifa nem sequer me respondeu.

Em países periféricos não seria mais fácil empurrar certa exigências?

Não sei. Eu não fiz uma análise sobre como se deu a relação da Fifa, por exemplo, com o governo da Alemanha para a Copa de 2006. O que eu vi e que achei absolutamente escandaloso foi que a Fifa estabeleceu protocolos com os governo locais da África do Sul. Exigências do tipo: não se podia vender outra marca de cerveja, não apenas dentro dos estádios, mas num raio de quilômetros no entorno dos estádios. Foi estabelecida uma política específica com julgamento sumário no momento em que a pessoa pudesse cometer algum tipo de delito. De tal maneira que a gente pode chamar de estados de exceção e territórios de exceção. Eu não sei se essa é uma tendência no tempo, que foi piorando, ou se é porque se trata dos países emergentes. Mas, de fato, o estado de exceção tem-se ampliado. E, eu não preciso dizer, as denúncias de corrupção em relação à Fifa são notórias.

Em termos de transparência, como a senhora avalia a remoção e o reassentamento de pessoas no Brasil para a Copa e para as Olimpíadas?

É completamente obscuro. Você não consegue encontrar em nenhum lugar, dentro dos projetos formulados pelas cidades, quantas pessoas serão removidas, qual é o valor que está previsto, o que foi apresentado para elas, para onde elas vão. Quando vai haver uma remoção, a comunidade tem de conhecer o projeto, tem o direito de discutir o projeto, tem o direito de apresentar uma alternativa, de estabelecer uma negociação. Tem o direito de ter um organismo independente para a própria comunidade poder acompanhar esse processo, com assistência técnica e jurídica, por exemplo, da universidade.

A senhora está falando da lei brasileira ou internacional?

Eu estou falando dos tratados internacionais sobre o direito à moradia dos quais o Brasil é signatário e que, portanto, são plenamente aplicáveis aqui. Eu tive a oportunidade de visitar comunidades que serão objeto de remoção. As pessoas não sabem de nada, não sabem por que, não sabem quando. Os funcionários da prefeitura chegam e pintam as casas com um número, assim como os nazistas faziam na Segunda Guerra Mundial. Então você sabe que a sua casa é um alvo, mas não sabe nem quando nem o que vai acontecer com você, nem que espaço você tem para conversar. Isso está acontecendo no Morro da Providência (Rio de Janeiro), em Fortaleza, e em outras cidades, sem nenhuma transparência, numa violação clara do que dizem os tratados internacionais sobre a matéria.

Ricardo Teixeira costuma dizer que a CBF (Confederação Brasileira do Futebol) é uma entidade privada, a Copa é um evento privado, aparentemente dando a entender que ninguém tem nada a ver com isso. Como a senhora analisa esse argumento?

A CBF pode ser uma entidade privada, mas nossas cidades são públicas, pelo menos até onde eu entendo o conceito de cidade. A gente não pode simplesmente deixar que as nossas cidades, com o beneplácito e a participação dos nossos governantes, sejam transformadas por pautas definidas por uma entidade privada.

Nos estados e cidades que não costumam receber tanto investimento do governo federal, o gasto com estádios se justifica, eventualmente, pelas transformações urbanísticas associadas?

Essa é outra dimensão: o gasto público. O governo federal não está colocando recursos na construção de estádios, mas governos estaduais estão. Está-se usando subterfúgios e alguns jeitinhos para entrar dinheiro público. É o caso do Atlético Paranaense, cujo estádio vai ser ampliado e reformado com a venda de recursos de potencial construtivo. O potencial construtivo é definido no âmbito do planejamento da cidade, portanto é de propriedade pública. Tem também o próprio investimento e financiamento do BNDES com juros mais leves que os do mercado, o que configura também financiamento público.
A segunda questão é o gasto total. Vale a pena? A gente tem casos de cidades que se endividaram. Olha o que está acontecendo na Grécia. Uma parte tem a ver com o custo das Olimpíadas de Atenas e que não foi pago. Agora está-se discutindo isso na África do Sul. O balanço é vermelho. Eu vi um estudo que fez o mesmo cálculo no caso dos Commonwealth Games, na Índia. E num país que tem uma demanda de investimentos tão importante como o nosso, vale a pena gastar nesse tipo de coisa? Acho que a pergunta é totalmente procedente.

Na sua opinião, o que feriria mais o orgulho dos brasileiros? Um novo Maracanazo ou problemas de organização que pudessem prejudicar a imagem do país?

Tem uma dimensão no campo geopolítico internacional que é uma tensão entre os países emergentes e menos desenvolvidos e Europa e América do Norte. É uma tensão mais ou menos assim: “Ah, esses paisinhos emergentes não sabem organizar nada, são todos corruptos”.
Tem uma pauta muito importante que é a afirmação dos países de que podem, sim, organizar grandes eventos. Isso foi extremamente importante para a África do Sul e é extremamente importante para o Brasil no cenário internacional, porque esses países estão tentando se colocar como contrapeso político numa História de hegemonia do mundo. Não é só de nacionalismo bobo, é também uma tensão real entre países. Quem manda no planeta? Acho que o Brasil está-se colocando numa posição de liderança dos excluídos. Esse componente é também muito importante. Para o cidadão brasileiro, evidentemente, as emoções de ganhar ou perder um jogo são terríveis.Pelo amor de Deus, só falta a gente perder essa final no Maracanã, vai ser muito deprimente. Mas do ponto de vista da geopolítica internacional, o impacto de organizar mal ou bem vai ser mais importante. A questão central é: para quem?

Eu gostaria que a senhora respondesse à sua pergunta. No Brasil, a quem vai beneficiar? Qual a sua expectativa?

Eu tenho grandes dúvidas. Pelo andar da carruagem, esta é uma operação que beneficia algumas grandes corporações e empresas, que vão conseguir vender produtos e serviços, algumas nacionais, outras multinacionais. E vai encher os cofres da Fifa e da CBF e dos seus dirigentes.
Vai ter alguma coisa pontual, algum corredor de ônibus que vai beneficiar a população que não tinha um ônibus bom, alguma reforma de espaço público em que uma parte da população vai encontrar um lugar agradável em cidades que são geralmente desagradáveis, algumas operações sobre assentamentos informais. Mas o centro da agenda, a balança dos ganhos e perdas é que é a questão

http://raquelrolnik.wordpress.com/2011/08/12/copa-do-mundo-e-jogos-olimpicos-o-espetaculo-e-o-mito/

terça-feira, 29 de maio de 2012

PSOL recorre ao MP contra compra de terreno pela prefeitura

Os vereadores Eliomar Coelho e Paulo Pinheiro (PSOL) recorreram ao Ministério Público a fim de impedir a venda do terreno da Tibouchina, em Jacarepaguá, para a prefeitura que pretende, ali, reassentar a comunidade Vila Autódromo. Segundo os parlamentares da bancada do PSOL no Legislativo, o preço do terreno subiu 178% em relação a primeira avaliação.
Os vereadores observam que estudo da GEO Rio indica que 70% do terreno foi classificado como área de risco. O local era uma antiga área de mineração, alvo de descomissionamento conforme Lei 90/2008 – de autoria do mandato Eliomar Coelho – com risco ambiental já caracterizado. A comunidade está ameaçada de remoção e reassentamento em função de obras vinculadas aos megaeventos (Copa 2014 e Olimpíadas 2016).
Os vereadores apontam motivações não esclarecidas para o reassentamento da comunidade que consta do projeto olímpico apresentado pela Aecom – empresa vencedora do concurso do IAB. Os parlamentares assinalam a ausência de análise de alternativa técnica e sustentam que a urbanização e regularização da comunidade seria menos dispendiosa que o reassentamento integral.
A prefeitura chegou a adiar a operação de compra, por R$19,9 milhões, do terreno da Tibouchina Empreendimentos. A decisão foi anunciada depois da veiculação de denúncia pelo jornal O Estado de S. Paulo sobre doações para o prefeito Eduardo Paes, no valor de R$ 260 mil, e para seu chefe de gabinete, Luiz Antonio Guaraná, no valor de R$ 45 mil, durante a campanha eleitoral de 2008, por parte das empresas Rossi Residencial e PDG Realty, que controlam a Tibouchina.
Um levantamento feito pelos vereadores Eliomar Coelho e Paulo Pinheiro detectou outras transações que favoreceram os secretários Pedro Paulo Carvalho Teixeira, da Casa Civil, Rodrigo Bethlem, da Assistência Social e Jorge Bittar, da Habitação, nas eleições de 2010. Os dois primeiros (do PMDB) receberam doações de R$ 70 mil, cada um, e Bittar (PT) recebeu R$ 30mil. Vale destacar que os três foram eleitos deputados federais naquele pleito e estão licenciados de seus mandatos para comandar secretarias que atuam nos processos de remoção que vem ocorrendo na cidade.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

O panorama das cidades doentes

 A urbanista Ermínia Maricato fala sobre sua experiência na administração pública, a força do capital imobiliário e por que o Estatuto das Cidades e outros instrumentos legais não são aplicados para beneficiar a população mais pobre

http://www.revistaforum.com.br/conteudo/detalhe_materia.php?codMateria=9420/O%20panorama%20das%20cidades%20doentes

Por Adriana Delorenzo e Glauco Faria
Fórum – A senhora participou de duas experiências marcantes no poder público; a primeira, como secretária do Desenvolvimento Urbano da prefeitura de São Paulo, na gestão de Luiza Erundina (1989-1992); a segunda, no Ministério das Cidades. Como situar essas duas experiências e os dois contextos na discussão sobre as cidades no Brasil?
Ermínia Maricato – Eu estava na universidade, no movimento de reforma urbana, quando dava assessoria voluntária para a primeira bancada de vereadores do PT. Tinha os vários profissionais que davam assessoria, como o Firmino Fecchio, que depois foi para a Secretaria Nacional de Direitos Humanos, junto com o Paulo Vanucchi, e outros profissionais. E essa coisa de dizer que o técnico despolitiza, não concordo com isso, acho que existe um técnico adequado à posição política. E não é verdade que o plano da política é absoluto. Quer dizer, se você tem uma proposta para a cidade, tem que entender como implantar, e, principalmente, se não tem a seu favor a corrente do rio, precisa conhecer muito pra conseguir implantar uma proposta que vá em direção diferente. Tem essa discussão de que a Dilma seria técnica e não política. Acho que ela é muito técnica e competente, e é de esquerda. Se ela está conseguindo fazer as coisas, é outra discussão.
Nós éramos, desde o nascimento do PT, técnicos que conseguíamos – como digo no livro O Impasse da política urbana no Brasil (Editora Vozes) – fazer propostas, o que para um técnico era um sonho porque a gente queria poder implementar determinados projetos, o que era impossível, inclusive na universidade. E lá a gente tinha essa diversidade, uma cultura interdisciplinar, aprendi demais com o pessoal de transportes, de trânsito, com o pessoal de meio ambiente, com as pessoas do saneamento... Eu estava muito feliz porque nós tínhamos então uma discussão que era política e, ao mesmo tempo, especializada. E ali se reunia todo mundo de todos os cantos que tinha uma utopia e não conseguia realizar, pessoas que trabalhavam em órgãos de governo, dentro do Estado e tínhamos aquela ideia de que tudo podia ser mais barato, tudo podia ser melhor, mais sustentável, mais democrático, em cada uma das nossas especialidades.
Conheci a [Luiza] Erundina nesse período e ela me convidou para ser secretária. Houve uma disputa complicada... O município é de fato muito mais difícil do que o próprio governo federal – não para o presidente, provavelmente - porque você está no local onde falta moradia, não está elaborando uma discussão que vai passar pelo Congresso lá em cima, e a Erundina, no movimento social, vinha de uma luta, na década de 1980, muito acirrada. Uma década que foi marcada primeiro pela contenção das políticas sociais; já tinha o rumo do neoliberalismo, sem ele estar explícito como ficou no Consenso de Washington em 1989. O mundo vinha da reestruturação produtiva do capitalismo, que o [David] Harvey nota, no ano de 1973, como uma espécie de ano em que se tem uma virada. Vinha de um PIB muito alto na década de 1970, mantido a essa altura principalmente pela construção civil, que construía muita moradia e muita infraestrutura pelo Brasil todo. Era a década do milagre brasileiro da ditadura. Havia também um movimento político extraordinário que eram os movimentos urbanos, na década de 1970 eles começam a se desenvolver no Brasil e depois tivemos as greves operárias. Havia o operário de um novo ciclo, concentrado no ABC, e o declínio da ditadura e a emergência de uma sociedade civil que estava querendo abertura e formulando propostas.
Ao mesmo tempo, as cidades iam piorando, as décadas de 1980 e 1990 foram terríveis para o destino das cidades. A década de 1970 também, porque o regime militar rebaixou salários, os ganhos da força de trabalho, embora do ponto de vista da formulação da política urbana, ela era mais avançada do que atualmente, até – tinha uma agência nacional de transporte urbano, o setor de saneamento, de habitação, que foi reeditado agora no governo Lula.

Fórum – Função de planejamento Estado que desapareceu durante o apogeu do neoliberalismo.
Maricato – Em termos de planejamento, o regime militar foi pródigo em fazer planos diretores, teve uma fábrica de planos diretores. Mas, na verdade, era uma coisa que não se implantava, também não é muito diferente do que é agora, quando temos é essa superestrutura jurídica urbana e estamos vendo que não se aplica, um exemplo é o Pinheirinho, uma mostra de que o juiz pode fazer o que quiser com a lei, até desconhecer a legislação.
Quando Erundina me convidou, tive que inverter o trabalho da Secretaria. As secretarias, as prefeituras no Brasil, são todas voltadas para a cidade legal, a cidade do mercado, e nós vínhamos de uma tradição acadêmica e ativista na cidade “ilegal”. Queríamos trazer essa cidade para o centro da política urbana. E a Erundina, ninguém mais do que a Erundina, tinha uma prática nessa área... Segurou um despejo, ela segurou, enfrentou a polícia. A nossa situação era muito difícil, a Câmara contra, a mídia toda contra, queríamos mudar as coisas, mas não tínhamos uma correlação de forças que nos ajudasse, e o próprio partido estava na direção também contrária em alguns momentos. Talvez se tivéssemos feito a aliança que alguns queriam, teríamos nos saído melhor, mas não me arrependo de nada do que fizemos. Fomos muito coerentes o tempo todo com tudo que a gente pregava, mas a vitória naquela eleição foi uma surpresa, todo mundo sabe disso, e cada um de nós vinha com tantos sonhos... Foi muito difícil mudar a máquina, implementar o que a gente queria. Tivemos realmente muita oposição.
E é engraçado, passados dois, três anos do governo Erundina, onde chegávamos éramos recebidos com um respeito impressionante. Houve uma volta por cima em relação àquela oposição que dizia que a gente era inexperiente e, na verdade, quando olho pra trás, acho que foi feita muita coisa, pelo menos na nossa área houve um reconhecimento internacional. A equipe era muito boa, o Nabil Bonduki era titular da Superintendência de Habitação de Interesse Social – que era uma espécie de apêndice da Secretaria e se tornou um órgão central. Por quê? Porque o governo no Brasil desconhecia – e ainda desconhece – o ilegal, o informal, parece que favela é uma ocorrência menor. O próprio IBGE não mede, subdimensiona o número de pessoas que moram em habitação subnormal no Brasil. E, no entanto, passa de 20 milhões segundo o IBGE, de fato, chega a quase 30, é um país todo que mora em favela e loteamentos clandestinos.
Por que é que existia essa superintendência de habitação popular na Secretaria de Habitação? Porque as favelas pegavam fogo, porque muitas estavam na linha das obras, era um apêndice para lidar com os pobres, moradores de rua, favela, loteamentos ilegais, com as emergências. Enquanto não tinha emergência, ninguém ligava. É como eu digo: quais são as favelas que são despejadas hoje? Só as que estão em terra que têm valor de mercado.

Fórum – Em São Paulo, isso foi feito em diversas gestões, na do Jânio Quadros, por exemplo... 
Maricato – Nessas áreas. E na periferia ele fazia urbanização. Já fui dar aulas em universidades de caráter conservador, onde os estudantes falavam “mas a Erundina ajudou os favelados a se consolidarem”. Então, há muito desconhecimento sobre as cidades brasileiras, sobre o urbano no Brasil. Muito. Minha esperança era que o Ministério das Cidades fosse mudar esse quadro. Não a curto prazo, porque não se muda isso a curto prazo. Quantas pessoas sabem que você tem 30% da população em favela em Fortaleza, mais do que isso em Salvador, mais do que isso em Recife? Quantas pessoas sabem disso? Aí, quando você olha a cidade formal, a legislação, e os órgãos que administram o quadro construído, vai ver o oposto.  Leis ultradetalhadas, uma superburocracia que acho que não tem na Suíça... Apesar de que, na Suíça, o uso do solo, como na Holanda, na Alemanha, é absolutamente rigoroso, o Estado tem o controle absoluto. Não tem essa conversa de você deixar terra para engordar, sem função, para especular.
Bom, então, acho que a gente fez uma gestão muito inovadora na cidade de São Paulo. Mas era muito cedo, realmente, para aquilo que fizemos.

Fórum – E depois, no Ministério das Cidades, que já era outro momento, como foi a experiência?
Maricato – Quando a gente estava em São Paulo, o Guiomar Matos, que era secretário de Obras, nos ensinava como o tamponamento de córregos era um desastre na história de São Paulo. E aí a gente aprendia muito e pensava “bom, mas então a marginal do rio é um erro”. Ocupar córrego, pelo Código Florestal, também é um erro. É incrível que as secretarias de Meio Ambiente, muitas, neste país, deixam fazer asfalto em beira de rio e não deixam fazer moradia.
Começamos a aprender uma série de coisas e o quanto era burocrática a nossa máquina pública. Por que era tão burocrática? Porque você tem uma ambiguidade na aplicação da lei. O [episódio do despejo no] Pinheirinho mostrou isso: há uma total arbitrariedade na aplicação da lei. Você tem fraude de registro no Brasil, que é muito mais norma do que exceção. Há essa tensão na aplicação da lei. Existe um ardil na sua aplicação. E é absolutamente contraditório. Imagine se você levasse a sério a lei do zoneamento e o plano diretor? Em certos casos, se eu aplicar a lei de zoneamento, vai ser pior. Por exemplo: se existem quase 2 milhões de pessoas morando ilegalmente na área de proteção dos mananciais, onde você põe esse povo? Se de repente você fala “vamos cumprir a lei”, tira essas pessoas e não deixa entrar mais ninguém. Você põe onde e como é que você vai impedir a entrada? O povo não evapora. Ele vai morar em algum lugar. Muitas pessoas estão morando em áreas de proteção ambiental porque estas não interessam ao mercado imobiliário. E elas são invisíveis.
Quanto ao Ministério das Cidades, fui para a equipe de transição, e sabia o que o Lula queria de mim, porque nós tínhamos feito o Projeto Moradia, e, nele, estava a ideia de criação do Ministério das Cidades. Quando acabou essa experiência na Prefeitura, a Erundina teve 70 processos e eu tive três ou quatro e fui muito bem defendida, por gente como José Afonso da Silva, Márcio Thomaz Bastos, Paulo Lomar, Sérgio Renault, e havia um grupo de pessoas me ajudava a pagar. E é impressionante como no Brasil os corruptos nos acusam.
Então, tinha prometido a mim mesma que eu não voltaria ao Poder Público. Mas fiquei no Ministério das Cidades, que para qualquer urbanista é um sonho, participar da criação e depois implementar, com o Olívio [Dutra] à frente. E aí foi muito diferente a experiência, porque o Olívio tem uma postura de maior tranquilidade diante dos conflitos do que eu tinha, além de muita experiência. E ele tinha muita confiança em mim e na minha capacidade de direcionamento técnico e político no Ministério. A equipe era maravilhosa, tinha um lado de ativista, uma boa parte da equipe tinha um lado de acadêmico, com títulos, e o lado profissional. Já tinham passado pela administração pública, porque a primeira experiência no Poder Público é absolutamente necessária para você não levar um susto com a burocracia, com os pequenos conflitos, as pequenas disputas de poder e tal... Pequenas, às vezes nem tanto... (risos)
Foi um momento interessante, muito novo, a questão urbana era nova, e a gente sabia que estava correndo contra o tempo, que aquilo podia acabar, aquela lua-de-mel da gente com a gente mesmo. Eram discussões maravilhosas, chegamos a fazer, por exemplo, um manual para auxiliar os deputados a fazer emendas mais necessárias de acordo com a política urbana em cada região do país etc. Mas o asfalto ganhava... o asfalto dá muito voto. E ficamos às vezes administrando, como falei, metade do orçamento do Ministério para emendas.
Quando o Olívio saiu, decidi ir embora porque já havia uma disputa pesada nos três primeiros anos do governo Lula. A disputa era pela macroeconomia, pela orientação financeira do governo. A gente não tinha dinheiro para aplicar e, obviamente, queríamos recuperar a política urbana propriamente dita, esta que é o desenvolvimento urbano, o uso e a ocupação do solo, casada principalmente com a política de transporte, mas também com saneamento e habitação, que era competência principalmente do governo municipal pela Constituição Federal. E do governo metropolitano – governo entre aspas, porque nós não temos, pela Constituição Estadual.
E caiu no limbo desde então. Já escrevi sobre isso, refleti muito: por que é que a gente jogou tanta competência para o município? E também tem o desenho da questão metropolitana, porque cada Estado tem uma ideia do que é uma metrópole. Aquilo é desenhado em cada estado e aí aconteceram essas coisas; numa certa hora, no Brasil, Manaus não era metrópole e Santa Catarina tinha cinco. A gente deixou isso para o poder local ou regional resolver. E hoje, sinceramente, acho que deveria estar na esfera federal. A Constituição de 1988 tirou muita coisa do poder central porque a ditadura era absolutamente centralizada, não tinha participação nenhuma e a gente sentia que o município precisava participar da democracia, era onde os moradores iam participar da elaboração da política urbana. A gente entendia isso, que cada cidade é uma cidade, diferente da outra, devido à região, ao clima...
Quando a gente foi para o governo federal, percebeu que poderia obrigar as prefeituras a fazer plano diretor, por exemplo. Mas como o município é autônomo, não poderíamos obrigar o município a cumprir, a aplicar, por exemplo, o Estatuto da Cidade, que é uma lei federal conquistada a duras penas. A questão urbana é federativa, e depende de um acerto dos três governos. O capital imobiliário é muito forte lá em cima, mas é absolutamente forte no município. É muito comum agentes do capital imobiliário virarem prefeitos ou vereadores, ou bancarem a campanha dos mesmos. E como a questão da terra sempre foi uma questão central no movimento e na agenda da reforma urbana, pode-se dizer que o governo federal tem, sem dúvida, um poder limitado no que se refere ao desenvolvimento urbano.
Nesse sentido, qual era a nossa ideia? Talvez fazer uma lei para as metrópoles, em nível federal, e talvez, mas não necessariamente, fazer capacitação e formação de quadros no poder público, para aplicação dos novos instrumentos jurídicos criados a partir da Constituição, quando se reconhece a função social da propriedade, a função social da cidade, o direito à moradia. Havia uma série de elementos novos, muito desconhecidos inclusive no Judiciário, como a prática atual está mostrando, e não existe aquela propriedade “absoluta” na qual a juíza se baseou para decretar o despejo do Pinheirinho. Não existe essa figura. Existe na cabeça dela e de muita gente, dos operadores de Direito no Brasil, até de muita gente pobre, que dizia “não, nós não estamos aqui legalmente, mas estamos legitimamente”. E eu falava “não, senhor, vocês estão legalmente”.
E nós lutamos, lutamos, conquistamos um monte de coisas. Temos um novo Marco Regulatório do Saneamento, temos o Estatuto da Cidade; com a nova Constituição, temos uma Lei de consórcios públicos, que foi votada em 2005, temos o Conselho das Cidades, Conselhos Técnicos, um aparato institucional novo, importante, mas a sociedade brasileira age como se isso não existisse. A sociedade. Porque estou cansada desse negócio de só “ah, a culpa é do governo”. Se um governo quiser melhorar a condição de circulação e transporte no seu município, um governo municipal, e proibir automóveis de circular, ele pode? Aqui em São Paulo tem o rodízio, mas isso não está resolvendo em lugar nenhum, principalmente aqui. Cercear a circulação de automóvel, mas investir na circulação de transporte coletivo – ônibus combinado com trem e metrô – é algo central, hoje é o principal na política urbana. Combinado ao uso do solo, você tem que ter lugar para o pobre morar. Entendeu? E esse lugar tem que ter transporte. Não é “põe pra fora da cidade”, o que não mudou muito com a política atual de habitação. Nós não mudamos o que era básico na lei de reforma urbana, que era a questão da função social da propriedade. Mas estamos desconhecendo que ela existe.
Essa situação para nós estava clara. A gente queria construir novos paradigmas. Assim, fazer um trabalho bem a la Paulo Freire...

Fórum – Combater o analfabetismo urbanístico, como a senhora fala...
Maricato – Exatamente. Outro dia, estava num debate com o Juca Kfouri, ele até deu risada. Uma pessoa lá perguntou: “você não gosta de futebol?”. Eu falei “gente, eu realmente tenho um problema com o futebol, que é o seguinte: se todo cidadão que conhece tão bem a seleção brasileira, de qualquer ano, o que aconteceu, quem era o técnico, quem era o massagista, qual foi o resultado do jogo, quem fez os gols, conhecesse o quanto tem de investimento na sua cidade e como é que esse dinheiro está sendo aplicado...”. Porque é um dinheiro sobre o qual se fazem os lobbies. E o automóvel, o sistema viário, as pontes, viadutos, que aí também entra uma empreiteira... Houve uma reserva de mercado para a construção pesada no Brasil, e ela é competente para fazer obra no mundo inteiro. Ela sabe trabalhar com muito conceito, por isso que foi construir estrada no Iraque...

Fórum – E na América do Sul, em vários lugares também...
Maricato – Em Miami, na África... Bom, mas quando o Olívio saiu, fiquei pensando que alguma coisa ia segurar, porque tivemos um movimento forte, com um pé dentro da Academia, nos Legislativos, começamos a ter gente ligada à reforma urbana; nos Executivos, muitas prefeituras começaram na década de 1980 e 1990 a fazer experiências novas no Brasil. Nós tínhamos nos profissionais uma visão nova, na área do Direito... Na área de arquitetura e urbanismo, praticamente criamos uma escola. O know-how de urbanização de favela no Brasil é respeitado no mundo inteiro. O Estatuto da Cidade é respeitado no mundo inteiro. Já fui falar na Índia sobre o Estatuto da Cidade para o governo central, mas sou honesta, falei que ele não está sendo aplicado no Brasil. Na África do Sul também falei. Não temos correlação de forças para aplicar a função social da propriedade, como foi pensado. No setor de saneamento, durante esse período que a gente criou a emenda de Reforma Urbana, tinha uma Frente Nacional do Saneamento.
Achei, depois do movimento de reforma urbana e depois desse pessoal no Ministério das Cidades, que nunca mais iríamos tamponar córrego, a não ser por uma medida absolutamente necessária. E eu estou cansada de ver o dinheiro do Ministério das Cidades fazendo impermeabilização do solo até dizer chega. Depois vão se queixar de enchente. Porque tapar córrego transfere a enchente de um lugar para o outro. Pensei que a gente tinha feito a diferença, mesmo que só em dois anos e meio, com o Olívio e aquela equipe. Ficou gente boa lá, mas acho que perdemos a luta, que é pela hegemonia do tema, do assunto. Quando eu digo “o Brasil mudou de agenda”, o André Singer tem razão, é porque mudou mesmo, porque não dá mais para um governo entrar sem manter Bolsa-Família, por exemplo. Mas as cidades estão sendo administradas com a política velha. Velha! Parece que nem nós passamos pelo governo.
Tudo bem, temos, pela primeira vez na história, no governo federal, subsídios para a baixa renda, a política do Minha Casa, Minha Vida... Mas acontece que, como não houve reforma fundiária, o dinheiro que chegou foi um dinheiro que alimentou a especulação imobiliária e o preço dos imóveis. Em 2010, naquele ano, depois do lançamento do Minha Casa, Minha Vida, o preço dos imóveis já subiu, disparou. Se você não tiver alguma política que freie os ganhos imobiliários, e há vários instrumentos para isso, no Plano Diretor, Imposto Progressivo, ZEIS (Zona Especial de Interesse Social), preempção, que estabelece que qualquer terra que vai ser vendida, desde que esteja sob direito de preempção, tem que ser oferecida primeiro para o poder público. Se ele não quiser, a pessoa tem que vender pelo mesmo preço para o privado. Isso faz uma diferença. Essas questões não foram aplicadas e o que a gente está vendo, mais do que nunca – talvez, só menos que no auge do BNH –, é uma especulação bárbara.

Fórum – Ou seja, existia uma ideia de se fazer esse investimento em moradias de baixa renda, destinadas a esse público, mas isso está sendo desvirtuado e acaba não suprindo o déficit habitacional do país.
Maricato – Porque 90% do déficit habitacional está situado na faixa de baixa renda, entre 0 e 3 salários mínimos. E aqui cabe explicar uma outra coisa de que nós tínhamos clareza absoluta: o mercado imobiliário brasileiro, até o Lula assumir – porque quando nós estávamos no Ministério das Cidades nós começamos a mudar esse quadro, mas ele mudou mesmo foi com o Minha Casa, Minha Vida – só produzia para acima de 10 salários mínimos. É um mercado que um autor, o Milton Vargas, chama de “artesanato de luxo”. É uma indústria que não era muito produtiva, esmagava a força de trabalho e aplicava muito no conspícuo, no consumo conspícuo.
O que é o consumo conspícuo? A pessoa projeta e coloca ali um Espaço Gourmet, o Child Care, o Fitness Center, pode ser tudo o simulacro, é o condomínio com clube, as torres com o clube dentro, e aí tudo muito bordado, fachada, tarará... Uma parte expressiva da classe média não entrava no mercado. Enquanto isso, você vê que funcionário da USP mora na favela ao voltar do campus da universidade, você vê que o policial militar mora em favela, percebe que tem pessoas que são funcionários públicos, têm segurança no emprego e não são clientes para o mercado imobiliário formal capitalista. É esse o capitalismo brasileiro.
Tínhamos uma proposta no Ministério das Cidades, que foi construída no Instituto Cidadania, na qual afirmávamos que se fossem feitas casas, moradias sociais para baixa renda, e a classe média ficasse sem alternativa, seria o mesmo que enxugar gelo. Isso nós já tínhamos experiência nas prefeituras. Então o que a gente precisava? De uma política para a classe média e uma política para a baixa renda. A política para a classe média era, do nosso ponto de vista, uma política de mercado. E a política para baixa renda, uma política pública. E o Minha Casa, Minha Vida aparentemente fazia isso, porque ele dá subsídio só para quem tem renda abaixo de 5 salários mínimos. Mas, mesmo quando é subsidiado quem constrói vai no teto daquilo que o subsídio permite.

Fórum – Se vai de 0 a 5 salários, as construtoras voltam os esforços pra faixa maior. No fim das contas, também vira uma política voltada para o mercado.
Maricato – É. E por que é que a gente fala voltada para o mercado? Quando o Minha Casa, Minha Vida veio, as maiores empresas do Brasil tinham terra. E elas ganharam muito com renda da terra. Todas as grandes têm um braço popular hoje, mesmo as de luxo têm. Então, essas grandes têm um estoque, e outras já estão precisando comprar terra. As médias, todas, e pequenas estão precisando comprar terra. E o movimento social ficou sem área até para ocupar. Por exemplo, os movimentos sociais urbanos que constroem casas, muitos deles da época da gestão Erundina, se tornaram especializados em mutirões habitacionais etc, e começaram a disputar terra com o próprio mercado na periferia.

Fórum – Agora, ao mesmo tempo, em São Paulo, existem essas operações urbanas e a elevação de preços dos imóveis da região central, afastando ainda mais os pobres para as periferias. Qual deve ser o papel dos movimentos sociais, é ocupar os imóveis vazios? Como podem se articular diante de um panorama diferente daquele de vinte, trinta anos atrás? 
Maricato – Olha, eu posso ser processada se disser que os movimentos devem ocupar. Mas só queria dizer que, se os movimentos não ocupam, essa questão não tem visibilidade. Não, se não ocupam áreas valorizadas. Ocupar, pode, você vai ocupar área de proteção de mananciais? A lei não permite, mas pode. Quero dizer que ninguém vai tirar você de lá a não ser que seja uma coisa pontual. Mas vai ocupar um prédio na Prestes Maia que deve R$ 4 milhões de IPTU pra ver se consegue ficar... Ali, onde a lei permite, não se pode ficar; nas áreas de mananciais, onde a lei não permite, pode. Qual é a norma, a lei que existe neste país? É a de mercado, não é a norma jurídica. Lá, no centro, você não pode porque tem tudo lá, é um tesouro. É o melhor lugar, não tem nenhum local em que o transporte público é melhor, você não precisa ter carro.

Fórum – E em relação a essas novas centralidades em São Paulo, como a região da Berrini.
Maricato – Os americanos construíram a tese da máquina do crescimento, uma articulação de forças que vai conduzir o crescimento da cidade em um sentido. E nos EUA até as lideranças sindicais podem entrar na máquina do crescimento, quando uma cidade compete com as outras, por exemplo, para atrair investimentos, se faz uma coalizão em que todos apostam num determinado sentido do crescimento. Para a Berrini, o que a pesquisadora Mariana Fix e o João Whithaker mostraram é que houve um conjunto de forças que levou o mercado para essa região. O Lamparelli fala que a centralidade da cidade está ligada ao uso da elite e do mercado imobiliário. O centro perdeu centralidade, o Mappin já foi lugar em que as senhoras tomavam chá à tarde, iam ouvir violinos na confeitaria... O capital imobiliário foi para a Paulista e o centro degradou-se; depois foi para a Faria Lima, e a Paulista degradou-se; agora vai para a Berrini, e a Faria Lima começa a degradar. Tudo que é popular é degradado.
O motor é econômico. A fronteira da expansão imobiliária precisa se deslocar e você vê isso em qualquer cidade se expandindo. Em vez de aplicar onde é necessário, por prioridade social, vamos aplicar para produzir a nova centralidade e é lá que o capital imobiliário está.

Fórum – Esse capital imobiliário praticamente norteia as políticas públicas e temos marcos legais para que isso não ocorra. O que falta nessa equação?
Maricato – É a correlação de forças. O governo estadual usou uma força no Pinheirinho que, se não tivesse a repercussão que teve, inclusive em nível internacional, iria se repetir no Brasil inteiro, porque tem muita gente de olho em terras onde estão favelas. Não qualquer terra, mas terras valorizadas. Como o mercado imobiliário está “bombando”, creio que isso foi um ensaio.

Fórum – Existe uma questão em que a senhora toca, mas que não é muito abordada, que é o enfraquecimento dos cinturões verdes, que existiam em torno das cidades, e a relação disto com a força do agronegócio. Como ele muda a lógica do panorama nas cidades?
Maricato – Ele acaba dificultando ou inviabilizando a vida do pequeno. Por exemplo, o pequeno produzia arroz e hoje não tem mais máquina de beneficiamento perto de São Paulo, ficando nas mãos do grande e do médio. A Caixa Econômica Federal está fazendo um esforço para não levar os conjuntos habitacionais voltados para a população de baixa renda para o campo, fora da cidade. Mas as câmaras municipais estão pegando áreas rurais e declarando como área de expansão urbana. Daí você obriga o pequeno produtor a pagar IPTU, ou seja, quebra o pequeno produtor que planta próximo às cidades. O cinturão verde existe em São Paulo e é muito importante e seria importante também ter dentro das cidades essas áreas permeáveis à água de chuva para evitar as enchentes. Agora, quando ela sobe muito de valor, é muito difícil de segurar, principalmente para um pequeno proprietário.
O governo Lula teve duas iniciativas importantes ao garantir que um terço da merenda escolar venha da agricultura familiar e ao assegurar a compra da produção. Isso ajuda a permanência do pequeno produtor. Mas, para competir com o agronegócio, você precisa diminuir o custo do transporte do alimento, o que os europeus e americanos estão fazendo. Hoje, o alimento orgânico é caro, mas prefeituras como Suzano, Guarulhos, Mauá, estão produzindo orgânicos dentro da cidade, com alta produtividade. Isso seria o encontro do campo com a cidade que estamos precisando, a junção da cidade, do campo e do meio ambiente. E aí você pode ter cidade verticalizada, compacta? Pode. Mas com o transporte adequado e áreas permeáveis fazendo parte do tecido urbano. Na cidade compacta, você tem alta qualidade de infraestrutura e está furando essa cidade dispersa. Toda metrópole brasileira está cercada do loteamento fechado, que é uma figura ilegal. Pela lei, não poderia estar fechado. Mas ali moram juízes, promotores, donos de jornal...

Fórum – No caso de São Paulo, em particular, a crise é maior do que em outras cidades? Saiu uma pesquisa da Rede Nossa São Paulo que diz que 56% das pessoas gostariam de sair da cidade. 
Maricato – Olha, fico impressionada com o nível de patologia urbana que a gente aguenta. Sabe aquela história de que, se você esquentar a água devagar até ferver, a rã, o sapo, não pula? Você já ouviu falar? Conheço uma filha de uma amiga minha que falou assim “se você morar numa cidade com uma relativa qualidade de vida e vier para São Paulo, você não fica”. Inclusive o professor Paulo Saldiva, da USP, está mostrando o impacto das doenças respiratórias com a alta concentração de poluentes no ar.
Depois, você tem as horas paradas. Como é que as pessoas aguentam? Uma hora e meia para chegar num lugar, uma hora e meia para voltar e as pessoas acham normal isso. Elas estão doentes. Não é possível aceitar isso. E o que é mais grave de tudo, ninguém mais defende o transporte coletivo. Ninguém mais, digo, coletivamente, em termos de classe, porque hoje os trabalhadores, de um modo geral, querem ou moto ou carro, podem ser velhos. Porque eles aprenderam que transporte público ou coletivo é maldição. Vai ver onde mais se gasta dinheiro? É em obra viária. O que é que você tem mandando na cidade? Bom, em primeiro lugar ninguém questiona, o automóvel. Ele está entupindo todas, todas as cidades. É suicídio. Não há o que fazer, alargar ruas, construir pontes, não adianta. É suicídio, o que está acontecendo. E o transporte coletivo foi derrubado nas décadas do neoliberalismo. Parou a política urbana, parou a política de habitação, de transporte e de saneamento. Bom, foi retomada agora a de habitação e saneamento, mas, sem política urbana, que seria o uso do solo mais essa infraestrutura principal.
Não tem o controle de uso e ocupação do solo, o automóvel não é questionado, o mercado imobiliário controla a legislação fundiária e imobiliária através da Câmara Municipal, e as grandes empreiteiras às vezes substituem a Secretaria de Planejamento e de Obras. Às vezes substituem literalmente a de Obras. Por quê? Porque o poder público não tem quadros, existe uma burocracia infernal e ao mesmo tempo uma condição de ilegalidade para quem fica de fora do mercado e das poucas obras públicas de habitação.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Terror imobiliário ou a expulsão dos pobres do centro de São Paulo


O modelo é contra os pobres que estão longe de constituírem minoria em nossa sociedade. O modelo quer os pobres fora do centro de São Paulo. Isso é óbvio. O que não parece ser óbvio é que, em última instância, a determinação disso tudo é econômica. A centralidade é a produção do espaço urbano e a mola propulsora, a renda imobiliária. E depois dizem que Marx está morto.

Dificilmente, durante nossa curta existência, assistiremos disputa mais explícita que esta, que opõe prefeitura e Câmara Municipal de São Paulo (além do governo estadual), que representam os interesses do mercado imobiliário, contra os moradores e usuários pobres, pelo acesso ao centro antigo de São Paulo. Trata-se do único lugar na cidade onde os interesses de todas as partes (mercado imobiliário, prefeitura, Câmara Municipal, comerciantes locais, movimentos de luta por moradia, moradores de cortiços, moradores de favelas, recicladores, ambulantes, moradores de rua, dependentes químicos, e outros) estão muito claros, e os pobres não estão aceitando passivamente a expulsão. 

No restante da cidade, como em todas as metrópoles brasileiras, um furacão imobiliário revoluciona bairros residenciais e até mesmo as periferias distantes, empurrando os pobres para além dos antigos limites, insuflado pelos recursos do Minha Casa Minha Vida no contexto de total falta de regulação fundiária/imobiliária ou, em outras palavras, de planejamento urbano por parte dos municípios. A especulação corre solta, auxiliada por políticas públicas que identificam valorização imobiliária como progresso. 

Ao contrário do silêncio (ou protestos pontuais) que acompanha essa escandalosa especulação que, a partir de 2010, levou à multiplicação dos preços dos imóveis, em todo o país, no centro de São Paulo, foi deflagrada uma guerra de classes.

Não faltaram planos para recuperar o centro tradicional de São Paulo. Desde a gestão do prefeito Faria Lima, vários governos defenderam a promoção de moradia pública na região. Governos tucanos apostaram em estratégias de distinção local por meio de investimento na cultura (como demonstraram muitos trabalhos acadêmicos) Vários museus, salas de espetáculo, centros culturais, edifícios históricos, foram criados ou renovados. No entanto, o mercado imobiliário nunca respondeu ao convite dos diversos governos, de investir na região, seja para um mercado diferenciado, seja para habitação social como pretenderam os governos Erundina e Marta. 

Outras localizações (engendradas pelas parcerias estado/capital privado, como demonstrou Mariana Fix) foram mais bem sucedidas como foi o caso da região Berrini/Águas Espraiadas. Outro fator que inibiu a entrada mais decisiva dos empreendedores no centro foi a reduzida dimensão dos terrenos. O mercado imobiliário busca terrenos amplos que permitam a construção de uma ou de várias torres- clube, padrão praticamente generalizado atualmente no Brasil.

Finalmente, há os pobres - com toda a diversidade já exposta - cuja proximidade desvaloriza imóveis novos ou reformados, coerentemente com os valores de uma sociedade que além de patrimonialista (e por isso mesmo) está entre as mais desiguais do mundo. Aceita-se que os pobres ocupem até áreas de proteção ambiental: as Áreas de Proteção dos Mananciais (são quase 2 milhões de habitantes apenas no sul da metrópole), as encostas do Parque Estadual da Serra do Mar, as favelas em áreas de risco, mas não se aceita que ocupem áreas valorizadas pelo mercado, como revela a atual disputa pelo centro. 

Enquanto os planos das várias gestões municipais para o centro não deslancharam (leia-se: não interessaram ao mercado imobiliário), os serviços públicos declinaram (o acúmulo de lixo se tornou regra), num contexto já existente de imóveis vazios e moradia precária. O baixo preço do metro quadrado afastou investidores e, mais recentemente, nos últimos anos... também o poder público. Nessa área assim “liberada” e esquecida pelos poderes públicos, os dependentes químicos também se concentraram. No entanto a vitalidade do comércio na região, que inclui um dos maiores centros de venda de computadores e artigos eletrônicos da América Latina, não permite classificar essa área como abandonada, senão pelo falta de serviços públicos de manutenção urbana e políticas sociais. 

Frente a isso, a gestão do prefeito Kassab deu continuidade ao projeto NOVA LUZ, iniciado por seu antecessor, José Serra, e vem se empenhando em retirar os obstáculos que afastam o mercado imobiliário de investir na área. Estão previstos a desapropriação de imóveis em dezenas de quadras e o remembramento dos lotes para constituírem grandes terrenos de modo a viabilizar a entrada do mercado imobiliário. 

A retomada de recursos de financiamento habitacional com o MCMV, após praticamente duas décadas de baixa produção, muda completamente esse quadro. Os novos lançamentos do mercado imobiliário passam a cercar a região. Vários bairros vizinhos, como a Barra Funda, apresentam um grande número de galpões vazios em terrenos de dimensões atraentes. A ampliação de outro bairro vizinho, Água Branca, vai se constituir em um bairro novo . 

Finalmente, o mercado imobiliário e a prefeitura lançam informalmente a ideia de uma fantástica operação urbana que irá ladear a ferrovia começando no bairro da Lapa e estendendo-se até o Brás. O projeto inclui a construção de vias rebaixadas. Todos ficam felizes: empreiteiras de construção pesada, mercado imobiliário, integrantes do executivo e legislativo (que garantem financiamento para suas campanhas eleitorais) e a classe média que ascendeu ao mercado residencial com os subsídios. 

O Projeto Nova Luz parece ser a ponta de lança dessa gigantesca operação urbana. 

Mas ainda resta um obstáculo a ser removido: os pobres que se apresentam sobre a forma de moradores dos cortiços, moradores de favelas, dependentes de droga, moradores de rua, vendedores ambulantes... Com eles ali, a taxa de lucro que pode ser obtida na venda de imóveis não compensa.

Algumas ações não deixam dúvida sobre as intenções de quem as promove. Um incêndio, cujas causas são ignoradas, atingiu a Favela do Moinho, situada na região central ao lado da ferrovia. Alguns dias depois, numa ação de emergência, a prefeitura contrata a implosão de um edifício no local sob alegação do risco que ele podia oferecer aos trens que passam ali (enquanto os moradores continuavam sem atendimento, ocupando as calçadas da área incendiada). Em seguida os dependentes químicos são literalmente atacados pela polícia sem qualquer diálogo e sem a oferta de qualquer alternativa. (Esperavam que eles fossem evaporar?). Alguns dias depois vários edifícios onde funcionavam bares, pensões, moradias, são fechados pela prefeitura sob alegação de uso irregular. (O restante da cidade vai receber o mesmo tratamento? Quantos usos ilegais há nessa cidade?). 

O centro de São Paulo constitui uma região privilegiada em relação ao resto da cidade. Trata-se do ponto de maior mobilidade da metrópole, com seu entroncamento rodo-metro- ferroviário. A partir dali, pode-se acessar qualquer ponto da cidade o que constitui uma característica ímpar se levarmos em conta a trágica situação dos transportes coletivos. Trata-se ainda do local de maior oferta de emprego na região metropolitana. Nele estão importantes museus e salas de espetáculo, bem como universidades, escolas públicas, equipamentos de saúde, sedes do judiciário, órgãos governamentais. 

Apenas para dar uma ideia da expectativa em relação ao futuro da região está prevista ali uma Escola de Dança, na vizinhança da Sala São Paulo, cujo projeto, elaborado por renomados arquitetos suíços – autores do arena esportiva chinesa “Ninho de Pássaro” - custou a módica quantia de R$ 20 milhões de acordo com informações da imprensa. É preciso lembrar ainda que infraestrutura local é completa: iluminação pública, calçamento, pavimentação, água e esgoto, drenagem como poucas localizações na cidade. 

Trata-se de um patrimônio social já amortizado por décadas de investimento público e privado. A disputa irá definir quem vai se apropriar desse ativo urbano e com que finalidade. A desvalorização de tal ambiente é um fenômeno estritamente ou intrinsecamente capitalista, como já apontou David Harvey analisando outros processos de “renovação” de centros de cidades americanas.

A luta pela Constituição Federal de 1988 e a regulamentação de seus artigos 182 e 183, que gerou o Estatuto da Cidade, se inspirou, em parte, na possibilidade de utilizar imóveis vazios em centros urbanos antigos para moradia social. Nessas áreas ditas “deterioradas” está a única alternativa dos pobres vivenciarem o “direito à cidade” pois de um modo geral, eles são expulsos para fora da mesma. Executivos e legislativos evitam aplicar leis tão avançadas. O judiciário parece esquecer-se de que o direito à moradia é absoluto em nossa Carta Magna enquanto que o direito à propriedade é relativo, à função social. (Escrevo essas linhas enquanto decisão judicial autorizou o despejo –que se fez de surpresa e de forma violenta- de mais de 1.600 famílias de uma área cujo proprietário – Naji Nahas - deve 15 milhões em IPTU, ao município de São José dos Campos. Antes de mais nada, é preciso ver se ele era mesmo proprietário da terra, já que no Brasil, a fraude registraria de grandes terrenos é mais regra que exceção, e depois verificar se ela estava ou não cumprindo a função social).

É óbvio, que o caso que nos ocupa aqui mostra a falta de compaixão, de solidariedade, de espírito público. Crianças moram em péssimas condições nos cortiços, em cômodos insalubres, dividem banheiros imundos com um grande número de adultos (quando há banheiros). Com os despejos violentos são remetidas para uma condição ainda pior de moradia pelo Estado que , legalmente, deveria responder pela solução do problema. Num mundo com tantas conquistas científicas e tecnológicas, dependentes químicos são tratados com balas de borracha e spray de pimenta para se dispersarem. Um comércio dinâmico, formado por pequenas empresas e ambulantes, que poderia ter apoio para a sua legalização, organização e inovação é visto como atrasado e indesejável. O modelo perseguido é o do shopping center, o monopólio, e não o pequeno e vivo comércio de rua ou o boteco da esquina. 

O modelo é contra os pobres que estão longe de constituírem minoria em nossa sociedade. O modelo quer os pobres fora do centro como anunciou o jornal Brasil de Fato. Tudo isso é óbvio. O que não parece ser óbvio é que, em última instância, como diria Althusser, a determinação disso tudo é econômica. A centralidade é a produção do espaço urbano e a mola propulsora, a renda imobiliária. E depois dizem que Marx está morto.

Ermínia Maricato é urbanista.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Nova Luz- São Paulo

Documentário sobre processo urbano denominado gentrificação (ou aburguesamento) ocorrendo em São Paulo, mas que acontece em diversas partes do Brasil e do mundo.
É mais um exemplo do "quando melhorar a gente sai", sobre a falta de uma política de moradia que contemple a população de baixa renda, principalmente nas áreas centrais das cidades, numa ação permanente em busca de terra urbanizada e bem localizada para a especulação imobiliária.
Mais de 100 anos fazendo isso e parece que ainda não aprendemos que esse modelo não funciona socialmente. Muito da precarização das nossas cidades vem disso.

http://vimeo.com/32513151

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Filme do MTST- Moradia é um direito.


A terra não é para ser vendida.
A moradia é um direito.
Enquanto houver sem-teto, haverá movimento.
Pelo direito à cidade e à terra urbanizada.
Para todos.







quinta-feira, 26 de maio de 2011

Frases que não viram manchete

Tem gente que diz os textos do blog são longos.
Seleção de frases e pensamentos depois do Encontro da ANPUR.

Estamos construíndo anti-cidades e urbanismos de exceção.

Criação de cidades dentro da cidade.

Imobilidade urbana via isenção de IPI e o drama dos transportes coletivos.

O setor público, em geral, é cliente da mesmas construturas.

A cidade empresa precisa da "ordem"para fazer negócios.

As UPPs rompem com a lógica do controle do território, não acaba com o tráfico.

O BOPE deixa de ser Especial quando 100% das suas ações são nas favelas. São ' homens de preto, matando pretos, quase todos pretos".

Com uma média de 3 pessoas assassinadas pela polícia todos os dias no Rio de Janeiro, estamos PACIFICADOS?

Não ter política pública para determinados espaços da cidade é uma política pública.

Vivemos em um Estado LEILOADO e não com um Estado paralelo.

As milícias sempre foram úteis para a elite política corrupta.

Milícia tem estrutura de máfia.

O projeto das UPPs não devem ser de segurança pública, mas de cidade.

Não há UPP em área de milícia.

O neoliberalismo foi responsável também por descontruir o sujeito coletivo.

Classe social é aquela que se constitui na luta.

5,5 milhões de construções subutilizadas no Brasil.

A revolução acabou. Agora está tudo na lei. Sobre a instituicionalização das lutas.

O MST faz mais do que ocupar terras. Eles criam o homem coletivo. Luta por uma nova sociedade.

Principal executor é Jorge Bittar, que assinala as casas que devem ser demolidas. Entenderam errado o sentido de erradicar a pobreza.

A PRESENTIVIDADE do trabalhador é importante. A representação é um truque burguês.

Algumas favelas ali foram criadas pelo próprio poder público. Sobre o Complexo da Maré.

Apenas o acesso a urbanidade não é garantia da qualidade de vida.

A propriedade é uma obrigação social. Constituição da Itália.

O direito enquanto processo é uma etapa das lutas políticas.

Posse é um instrumento de correção da propriedade injusta.

Vivemos uma democracia direta do capital.

Com tanto planejamento urbano, por que as cidades continuam tão injustas?

A terra, urbana e rural, é um ativo financeiro tão importante quando capital e trabalho para enfrentar a pobreza.

Necessidade de uma política pública para distribuição de terras.

Reforma Urbana está ligada a Reforma Política. As campanhas foram financiadas por grandes construtoras.

Sobre a política de habitação atual "plantação de casinhas".

A gente tem a casa, pena que a cidade não vem junto.

Modelo de desenvolvimento urbano brasileiro também é excludente sobre a decisão sobre o território.

A terra não tem só valor econômico. Sobre ribeirinhos, quilombolas, favelas.

Estatuto da cidade representa uma ampliação da responsabilidade territoriais dos promotores urbanos, públicos e privados.

Autonomia municipal é ficção. Os processos de desenvolvimento não são locais.

A captura da transferência de verbas é intermediada politicamente. Odomínio sobre a distribuição desse recurso nos municípios reproduz mandatos e partidos políticos.

Está tudo em regularização. Em relação a questão da terra nas cidades brasileiras. Isso gera uma ambigudades. Nunca é direito pleno para todos.

Distribuição seletiva de benefícios é cultural no Brasil.

O Estado está privatizado. O processo decisório está nas mãos de poucos.

A política de habitação de hoje da Caixa é muito parecida com a do BNH.

Artigo 240 da Lei Orgânica do Município regulamenta as Remoções no Rio de Janeiro.

O movimento popular pode evitar ações bruscas do Estado, mas as remoções vão ocorrer via mercado.

quarta-feira, 4 de maio de 2011

O porquê da CPI


Se instalada na Câmara Rio, a CPI das Remoções investigará crimes ambientais e de racismo. O mandato vem realizando uma ampla investigação nos últimos meses. Constatamos indícios de irregularidades, como obras executadas em desacordo com a legislação ambiental. Diante disso, nosso mandato concluiu que somente uma Comissão Parlamentar de Inquérito poderia dar mais celeridade e consistência às investigações. Caso ela venha a ser instalada, vamos averiguar danos morais e materiais e crimes ambientais. É fundamental o apoio da sociedade civil para que consigamos as assinaturas necessárias e a instalação efetiva da CPI.
Danos morais e materiais
· Destruição e extravio de bens e pertences pessoais das famílias removidas;
· Abandono de bens e pertences pessoais das famílias ao relento, sem qualquer assistência por parte do Poder Público, nem oferta de opção de depósito;
· Exposição de crianças, idosos e incapazes a situações vexatórias, sem acesso à educação nem à saúde pública, por conta dos despejos violentos, truculentos e para locais a dezenas de quilômetros de distância dos seus bairros de origem;
· Coerções diversas por parte de agentes públicos a moradores com pouca instrução e/ou já fragilizados pelos processos de remoção vivenciados por vizinhos;
· Inviabilização de estabelecimentos comerciais gerando desemprego e falências devido a não indenização;
· Discriminação e preconceito religioso contra templos de tradição afro-brasileira, por parte de agentes públicos da administração municipal;
Crimes ambientais:
· Obras em andamento realizadas em desacordo com as condicionantes impostas nas licenças ambientais;
· Corredor Transoeste: o próprio processo de licenciamento ambiental apresenta fortes indícios de irregularidades, uma vez que o EIA/RIMA da obra foi realizado em 1999 e a licença de instalação definitiva só foi emitida em 2010;
· Corredor Transcarioca: plano de desapropriações que não contemplou as comunidades pobres às margens do trajeto onde será implementado, mudanças no projeto após o licenciamento sem a devida avaliação do órgão ambiental;
· Não retirada de entulhos levando à proliferação de vetores de doenças infecto-contagiosas e ao acúmulo de lixo em áreas habitadas;

http://www.eliomar.com.br/2011/05/04/o-porque-da-cpi/

Eliomar pede CPI das Remoções


 

Para investigar as remoções e reassentamentos forçados de moradores para obras e intervenções urbanísticas em torno do Sambódromo, do Maracanã, dos corredores viários e na área do projeto “Porto Maravilha”, Eliomar Coelho deu entrada em requerimento, na Câmara Municipal, pedindo a instalação de Comissão Parlamentar de Inquérito. Para a CPI ser aprovada, o requerimento precisa do apoio de 17 vereadores, num total de 51.
Semana passada, Eliomar participou de uma reunião da Anistia Internacional com representantes destas favelas. De acordo com o parlamentar, o secretário-geral da Anistia, Salil Shetty, ficou impressionado ao ouvir o relato das famílias. Shetty ponderou que as autoridades brasileiras precisam ter sensibilidade ao promover o reassentamento por conta das obras para Copa e Olimpíadas. Segundo ele, não estão sendo respeitados os procedimentos legais na retirada das pessoas nessas áreas.
O parlamentar do PSOL participou também de reunião na Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro com o objetivo de assegurar aos moradores destas comunidades os direitos básicos estabelecidos por lei. O mandato vem acompanhando, denunciando e atuando junto à estas populações removidas.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Maravilha para quem?

O artigo Maravilha para quem? publicado pela revista Democracia Viva n° 46, do Ibase, problematiza a questão do direito à moradia diante do projeto Porto Maravilha, da prefeitura do Rio de Janeiro. A exemplo do que ocorreu em outras intervenções urbanas em regiões portuárias – como em Buenos Aires, Barcelona ou Nova York – devem aumentar os processos de especulação financeira e imobiliária na região. Enquanto isso, a população que vive naquela área, inclusive os moradores de ocupações, seguem tendo o direito à moradia negado. O projeto Porto Maravilha faz parte do contexto dos megaeventos – Copa de 2014 e Olimpíadas de 2016 – que prometem a remodelação da cidade. Resta saber quem serão os reais beneficiários destas modificações.
O texto é da assessora da Fase Rossana Tavares, arquiteta e doutoranda em urbanismo pela UFRJ e de Laura Burocco, pesquisadora do Ibase, pós-graduada em sociologia urbana pela UERJ.

Maravilha para quem?

Ocupações na Zona Portuária carioca lutam pelo direito à cidade, em meio à chamada revitalização da região
Os recentes grandes projetos e obras na cidade do Rio de Janeiro, por ocasião dos chamados megaeventos, principalmente a Copa 2014 e as Olimpíadas 2016, parecem despertar um fascínio coletivo, carregar uma aura de incontestabilidade. Já passa da hora de se quebrar essa unanimidade e trazer para o debate um olhar mais preocupado com o lado social dessas intervenções urbanas. Este artigo busca fazer isso ao analisar o Porto Maravilha, símbolo maior das pretensões da Prefeitura do Rio e de investidores para a cidade, e ao apresentar os movimentos cariocas de luta pela moradia e as ocupações localizadas na área portuária. Diversas cidades no mundo realizaram a chamada revitalização de suas zonas portuárias. Buenos Aires, Barcelona, Nova York, Roterdã são exemplos. Bairros, antes abandonados, viram alvo de especulação financeira e imobiliária. Essas intervenções são emblemáticas do que se denomina processos de gentrificação de regiões urbanas, muito comuns nas cidades intituladas globais.
O termo, difundido pela socióloga inglesa Ruth Glass, caracteriza a expulsão da população de baixa renda de bairros centrais e a atração da classe média para essas localidades devido à renovação de moradias e infraestrutura. Modifica-se de forma radical tanto a distribuição urbana quanto as relações socioeconômicas e impede-se a diversidade e a heterogeneidade. O processo de esvaziamento da área portuária no Rio de Janeiro passa pela construção da avenida Presidente Vargas, do elevado da Perimetral, pelo deslocamento de parte do transporte marítimo para o Porto de Itaguaí.
O isolamento teve o seu ápice na crise dos anos 1980. Uma das grandes evidências desse processo é a queda gradativa na utilização dos antigos armazéns da avenida Rodrigues Alves e o uso crescente de contêineres. Esse conjunto de fatores contribuiu para o processo de degradação urbana e redução das funções de origem daquela região, aspectos semelhantes aos encontrados em zonas portuárias de outras cidades do mundo e do Brasil. Num momento em que o país cresce a taxas razoáveis, o interesse da Prefeitura do Rio de Janeiro pelos bairros portuários tem o objetivo de inserir o município na dinâmica contemporânea de competitividade global entre cidades. Os chamados waterfronts são terreno fértil para eventos de mídia ocasionais, construção de marcos urbanos, entre outras empreitadas. Parece claro que os governos federal, estadual e municipal estão comprometidos em tornar o Rio de Janeiro uma cidade global. O Rio pode ainda explorar a imagem tradicional de cidade maravilhosa, balneário tropical, para atrair os investidores. Para que a iniciativa dê certo, o projeto, contudo, necessita eliminar tudo que seria sinal de atraso. Ou seja, toda a herança sociocultural e até econômica da área. No caso carioca, estamos falando de passar por cima de referências históricas de uma localidade onde se misturam descendentes de europeus, de quilombolas e comerciantes que resistem ali ao longo de décadas.
É opinião majoritária entre os moradores e moradoras da região que o projeto de revitalização da zona portuária, tanto o Porto Maravilha quanto o Porto Olímpico, não irão beneficiá-los. A reclamação mais rotineira é por não terem participado da elaboração da iniciativa, nem serem informados sobre ela. A intervenção municipal retoma inclusive a antiga política de remoção de moradia, aplicada nas favelas cariocas no século passado. Outro alvo recente são as ocupações em prédios públicos e privados, antes vazios e abandonados. O fenômeno é recente no Rio de Janeiro e, de certa forma, responde ao antigo problema de ausência de uma política habitacional para a população de baixa renda.
O projeto Porto Maravilha, ao propor o zoneamento da região, estabelece quatro áreas “residenciais”, sendo apenas uma “de interesse social”, a do Morro da Providência. As outras áreas são de casas e prédios passíveis de restauração. Esses imóveis, hoje ocupados por diversas famílias de baixa renda, irão terminar atendendo às classes médias. Nas localidades mais próximas do waterfront estão as áreas comerciais, de serviço, culturais, de turismo e entretenimento, um convite à apropriação da região pelo capital privado.
Uma das medidas mais controversas do Porto Maravilha são os Certificados de Potencial Adicional Construtivo (Cepacs), documentos emitidos pela Prefeitura, que permitirão que o coeficiente de aproveitamento básico (a relação entre a área edificável e a do terreno) de um lote seja extrapolado. Ou seja, os Cepacs abrem a possibilidade para se construir num terreno além dos limites determinados em lei. A exceção será concedida mediante pagamento. Os Cepacs não vinculados a um lote poderão ser negociados no mercado e os recursos captados nessas transações serão revertidos para a área portuária. A dinâmica vai gerar receita significativa para uma zona que, por conta dos projetos, já é alvo para um grande volume de investimentos.
Também haverá incentivos fiscais e a criação da Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio de Janeiro (Cedurp), com o objetivo de implementar concessões, parcerias, gerir ativos patrimoniais e disponibilizar bens e equipamentos para a Prefeitura ou para entes privados. Os papéis entre público e privado se invertem e rompe-se o caráter universalista que deve ter a destinação dos recursos públicos. Cria-se uma espécie de estado de exceção no Centro do Rio de Janeiro, que ganha um status de área para uso exclusivo.
O Porto Maravilha é maravilha para poucos. O projeto praticamente não conta com o envolvimento e a participação da população e lhe falta transparência nas decisões. Ele não tem como diretriz misturar classes sociais e diversificar os usos da região, considerando os já existentes. A iniciativa não prevê nenhuma ação para valorizar a memória, os patrimônios material e imaterial da região ou para garantir a permanência da população atualmente residente no local. Esses são alguns dos pontos negligenciados pelo Porto Maravilha. A tendência é transformar bairros portuários em lugares estéreis. A participação da população é vital para garantir o direito à cidade e um processo de transformação urbana sustentável e sem violação de direitos.
Num contraponto à intervenção da prefeitura, movimentos sociais de luta pela moradia se organizam na região. Nos últimos dez anos, eles têm resolvido por conta própria uma pequena parte do problema do déficit habitacional, ao ocuparem prédios públicos abandonados. Quatro ocupações se destacam: Chiquinha Gonzaga, zumbi dos palmares, quilombo das Guerreiras e Flor do Asfalto.
Ocupação Zumbi dos Palmares
A ocupação Zumbi dos Palmares é a que tem a situação mais complicada, devido à localização nobre, na avenida Venezuela, atrás da praça Mauá, onde será o MAR (Museu de Arte do Rio). De lá, sairá o teleférico para o morro da Conceição, passeio destinado aos turistas de cruzeiros que chegarem ao porto. A localização da Zumbi garante emprego, fácil acesso a comércio e escolas aos moradores e moradoras.
O prédio é do Instituto Nacional de Seguro Social (INSS) e foi abandonado nos anos 1970. Assim ele estava até a sua ocupação em 2005. O prédio se esvaziou recentemente pela ação da prefeitura. O poder público dividiu as famílias e enfraqueceu a mobilização ao oferecer indenização ou reassentamento em um conjunto habitacional em Cosmos, zona oeste da cidade. No entanto, o conjunto, construído pelo programa federal “Minha Casa, Minha Vida”, já apresenta rachaduras em sua construção.
Ocupação Quilombo das Guerreiras
A Quilombo das Guerreiras situa-se na avenida Francisco Bicalho, perto da rodoviária Novo rio. Ela é composta por camelôs, trabalhadores informais, que em 2006 ocuparam o prédio da Companhia Docas do Rio de Janeiro, abandonado então há mais de dez anos. A ocupação passa por um processo de reorganização e mudança para um imóvel a ser construído na Gamboa. A União por Moradia Popular (UMP), a Central dos Movimentos Populares (CMP) e a Fundação Bento Rubião têm contribuído com a articulação e a resistência das famílias. No entanto, a implantação de um binário (pista dupla com separação no meio) em parte da Gamboa tem prejudicado o cronograma das obras do novo imóvel. Há incertezas sobre a possibilidade de se permanecer no prédio atual até o final da construção do novo edifício.
Ocupação Flor do Asfalto
A Flor do Asfalto tem características próprias que a diferenciam das outras ocupações do porto. Ela existe desde 2006 na avenida Rodrigues Alves. A sua concepção aproxima-se mais do modelo dos squatters anglo-saxões dos anos 1970 do que das ocupações da cidade do Rio. Os integrantes são mais jovens do que os de outras ocupações. Seguem uma linha anarquista, porém mantêm o diálogo com as lideranças do movimento de luta pela moradia. Trata-se de um espaço que funciona como moradia, mas também é biblioteca, herbário, oficina de bicicletas, além de abrigar uma pequena agrofloresta e uma cozinha comunitária.