O panorama das cidades doentes
A urbanista Ermínia Maricato fala sobre sua experiência na administração pública, a força do capital imobiliário e por que o Estatuto das Cidades e outros instrumentos legais não são aplicados para beneficiar a população mais pobre
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Por Adriana Delorenzo e Glauco FariaFórum – A senhora participou de duas experiências marcantes no poder público; a primeira, como secretária do Desenvolvimento Urbano da prefeitura de São Paulo, na gestão de Luiza Erundina (1989-1992); a segunda, no Ministério das Cidades. Como situar essas duas experiências e os dois contextos na discussão sobre as cidades no Brasil?
Ermínia Maricato – Eu estava na universidade, no movimento de reforma urbana, quando dava assessoria voluntária para a primeira bancada de vereadores do PT. Tinha os vários profissionais que davam assessoria, como o Firmino Fecchio, que depois foi para a Secretaria Nacional de Direitos Humanos, junto com o Paulo Vanucchi, e outros profissionais. E essa coisa de dizer que o técnico despolitiza, não concordo com isso, acho que existe um técnico adequado à posição política. E não é verdade que o plano da política é absoluto. Quer dizer, se você tem uma proposta para a cidade, tem que entender como implantar, e, principalmente, se não tem a seu favor a corrente do rio, precisa conhecer muito pra conseguir implantar uma proposta que vá em direção diferente. Tem essa discussão de que a Dilma seria técnica e não política. Acho que ela é muito técnica e competente, e é de esquerda. Se ela está conseguindo fazer as coisas, é outra discussão.
Nós éramos, desde o nascimento do PT, técnicos que conseguíamos – como digo no livro O Impasse da política urbana no Brasil (Editora Vozes) – fazer propostas, o que para um técnico era um sonho porque a gente queria poder implementar determinados projetos, o que era impossível, inclusive na universidade. E lá a gente tinha essa diversidade, uma cultura interdisciplinar, aprendi demais com o pessoal de transportes, de trânsito, com o pessoal de meio ambiente, com as pessoas do saneamento... Eu estava muito feliz porque nós tínhamos então uma discussão que era política e, ao mesmo tempo, especializada. E ali se reunia todo mundo de todos os cantos que tinha uma utopia e não conseguia realizar, pessoas que trabalhavam em órgãos de governo, dentro do Estado e tínhamos aquela ideia de que tudo podia ser mais barato, tudo podia ser melhor, mais sustentável, mais democrático, em cada uma das nossas especialidades.
Conheci a [Luiza] Erundina nesse período e ela me convidou para ser secretária. Houve uma disputa complicada... O município é de fato muito mais difícil do que o próprio governo federal – não para o presidente, provavelmente - porque você está no local onde falta moradia, não está elaborando uma discussão que vai passar pelo Congresso lá em cima, e a Erundina, no movimento social, vinha de uma luta, na década de 1980, muito acirrada. Uma década que foi marcada primeiro pela contenção das políticas sociais; já tinha o rumo do neoliberalismo, sem ele estar explícito como ficou no Consenso de Washington em 1989. O mundo vinha da reestruturação produtiva do capitalismo, que o [David] Harvey nota, no ano de 1973, como uma espécie de ano em que se tem uma virada. Vinha de um PIB muito alto na década de 1970, mantido a essa altura principalmente pela construção civil, que construía muita moradia e muita infraestrutura pelo Brasil todo. Era a década do milagre brasileiro da ditadura. Havia também um movimento político extraordinário que eram os movimentos urbanos, na década de 1970 eles começam a se desenvolver no Brasil e depois tivemos as greves operárias. Havia o operário de um novo ciclo, concentrado no ABC, e o declínio da ditadura e a emergência de uma sociedade civil que estava querendo abertura e formulando propostas.
Ao mesmo tempo, as cidades iam piorando, as décadas de 1980 e 1990 foram terríveis para o destino das cidades. A década de 1970 também, porque o regime militar rebaixou salários, os ganhos da força de trabalho, embora do ponto de vista da formulação da política urbana, ela era mais avançada do que atualmente, até – tinha uma agência nacional de transporte urbano, o setor de saneamento, de habitação, que foi reeditado agora no governo Lula.
Fórum – Função de planejamento Estado que desapareceu durante o apogeu do neoliberalismo.
Maricato – Em termos de planejamento, o regime militar foi pródigo em fazer planos diretores, teve uma fábrica de planos diretores. Mas, na verdade, era uma coisa que não se implantava, também não é muito diferente do que é agora, quando temos é essa superestrutura jurídica urbana e estamos vendo que não se aplica, um exemplo é o Pinheirinho, uma mostra de que o juiz pode fazer o que quiser com a lei, até desconhecer a legislação.
Quando Erundina me convidou, tive que inverter o trabalho da Secretaria. As secretarias, as prefeituras no Brasil, são todas voltadas para a cidade legal, a cidade do mercado, e nós vínhamos de uma tradição acadêmica e ativista na cidade “ilegal”. Queríamos trazer essa cidade para o centro da política urbana. E a Erundina, ninguém mais do que a Erundina, tinha uma prática nessa área... Segurou um despejo, ela segurou, enfrentou a polícia. A nossa situação era muito difícil, a Câmara contra, a mídia toda contra, queríamos mudar as coisas, mas não tínhamos uma correlação de forças que nos ajudasse, e o próprio partido estava na direção também contrária em alguns momentos. Talvez se tivéssemos feito a aliança que alguns queriam, teríamos nos saído melhor, mas não me arrependo de nada do que fizemos. Fomos muito coerentes o tempo todo com tudo que a gente pregava, mas a vitória naquela eleição foi uma surpresa, todo mundo sabe disso, e cada um de nós vinha com tantos sonhos... Foi muito difícil mudar a máquina, implementar o que a gente queria. Tivemos realmente muita oposição.
E é engraçado, passados dois, três anos do governo Erundina, onde chegávamos éramos recebidos com um respeito impressionante. Houve uma volta por cima em relação àquela oposição que dizia que a gente era inexperiente e, na verdade, quando olho pra trás, acho que foi feita muita coisa, pelo menos na nossa área houve um reconhecimento internacional. A equipe era muito boa, o Nabil Bonduki era titular da Superintendência de Habitação de Interesse Social – que era uma espécie de apêndice da Secretaria e se tornou um órgão central. Por quê? Porque o governo no Brasil desconhecia – e ainda desconhece – o ilegal, o informal, parece que favela é uma ocorrência menor. O próprio IBGE não mede, subdimensiona o número de pessoas que moram em habitação subnormal no Brasil. E, no entanto, passa de 20 milhões segundo o IBGE, de fato, chega a quase 30, é um país todo que mora em favela e loteamentos clandestinos.
Por que é que existia essa superintendência de habitação popular na Secretaria de Habitação? Porque as favelas pegavam fogo, porque muitas estavam na linha das obras, era um apêndice para lidar com os pobres, moradores de rua, favela, loteamentos ilegais, com as emergências. Enquanto não tinha emergência, ninguém ligava. É como eu digo: quais são as favelas que são despejadas hoje? Só as que estão em terra que têm valor de mercado.
Fórum – Em São Paulo, isso foi feito em diversas gestões, na do Jânio Quadros, por exemplo...
Maricato – Nessas áreas. E na periferia ele fazia urbanização. Já fui dar aulas em universidades de caráter conservador, onde os estudantes falavam “mas a Erundina ajudou os favelados a se consolidarem”. Então, há muito desconhecimento sobre as cidades brasileiras, sobre o urbano no Brasil. Muito. Minha esperança era que o Ministério das Cidades fosse mudar esse quadro. Não a curto prazo, porque não se muda isso a curto prazo. Quantas pessoas sabem que você tem 30% da população em favela em Fortaleza, mais do que isso em Salvador, mais do que isso em Recife? Quantas pessoas sabem disso? Aí, quando você olha a cidade formal, a legislação, e os órgãos que administram o quadro construído, vai ver o oposto. Leis ultradetalhadas, uma superburocracia que acho que não tem na Suíça... Apesar de que, na Suíça, o uso do solo, como na Holanda, na Alemanha, é absolutamente rigoroso, o Estado tem o controle absoluto. Não tem essa conversa de você deixar terra para engordar, sem função, para especular.
Bom, então, acho que a gente fez uma gestão muito inovadora na cidade de São Paulo. Mas era muito cedo, realmente, para aquilo que fizemos.
Fórum – E depois, no Ministério das Cidades, que já era outro momento, como foi a experiência?
Maricato – Quando a gente estava em São Paulo, o Guiomar Matos, que era secretário de Obras, nos ensinava como o tamponamento de córregos era um desastre na história de São Paulo. E aí a gente aprendia muito e pensava “bom, mas então a marginal do rio é um erro”. Ocupar córrego, pelo Código Florestal, também é um erro. É incrível que as secretarias de Meio Ambiente, muitas, neste país, deixam fazer asfalto em beira de rio e não deixam fazer moradia.
Começamos a aprender uma série de coisas e o quanto era burocrática a nossa máquina pública. Por que era tão burocrática? Porque você tem uma ambiguidade na aplicação da lei. O [episódio do despejo no] Pinheirinho mostrou isso: há uma total arbitrariedade na aplicação da lei. Você tem fraude de registro no Brasil, que é muito mais norma do que exceção. Há essa tensão na aplicação da lei. Existe um ardil na sua aplicação. E é absolutamente contraditório. Imagine se você levasse a sério a lei do zoneamento e o plano diretor? Em certos casos, se eu aplicar a lei de zoneamento, vai ser pior. Por exemplo: se existem quase 2 milhões de pessoas morando ilegalmente na área de proteção dos mananciais, onde você põe esse povo? Se de repente você fala “vamos cumprir a lei”, tira essas pessoas e não deixa entrar mais ninguém. Você põe onde e como é que você vai impedir a entrada? O povo não evapora. Ele vai morar em algum lugar. Muitas pessoas estão morando em áreas de proteção ambiental porque estas não interessam ao mercado imobiliário. E elas são invisíveis.
Quanto ao Ministério das Cidades, fui para a equipe de transição, e sabia o que o Lula queria de mim, porque nós tínhamos feito o Projeto Moradia, e, nele, estava a ideia de criação do Ministério das Cidades. Quando acabou essa experiência na Prefeitura, a Erundina teve 70 processos e eu tive três ou quatro e fui muito bem defendida, por gente como José Afonso da Silva, Márcio Thomaz Bastos, Paulo Lomar, Sérgio Renault, e havia um grupo de pessoas me ajudava a pagar. E é impressionante como no Brasil os corruptos nos acusam.
Então, tinha prometido a mim mesma que eu não voltaria ao Poder Público. Mas fiquei no Ministério das Cidades, que para qualquer urbanista é um sonho, participar da criação e depois implementar, com o Olívio [Dutra] à frente. E aí foi muito diferente a experiência, porque o Olívio tem uma postura de maior tranquilidade diante dos conflitos do que eu tinha, além de muita experiência. E ele tinha muita confiança em mim e na minha capacidade de direcionamento técnico e político no Ministério. A equipe era maravilhosa, tinha um lado de ativista, uma boa parte da equipe tinha um lado de acadêmico, com títulos, e o lado profissional. Já tinham passado pela administração pública, porque a primeira experiência no Poder Público é absolutamente necessária para você não levar um susto com a burocracia, com os pequenos conflitos, as pequenas disputas de poder e tal... Pequenas, às vezes nem tanto... (risos)
Foi um momento interessante, muito novo, a questão urbana era nova, e a gente sabia que estava correndo contra o tempo, que aquilo podia acabar, aquela lua-de-mel da gente com a gente mesmo. Eram discussões maravilhosas, chegamos a fazer, por exemplo, um manual para auxiliar os deputados a fazer emendas mais necessárias de acordo com a política urbana em cada região do país etc. Mas o asfalto ganhava... o asfalto dá muito voto. E ficamos às vezes administrando, como falei, metade do orçamento do Ministério para emendas.
Quando o Olívio saiu, decidi ir embora porque já havia uma disputa pesada nos três primeiros anos do governo Lula. A disputa era pela macroeconomia, pela orientação financeira do governo. A gente não tinha dinheiro para aplicar e, obviamente, queríamos recuperar a política urbana propriamente dita, esta que é o desenvolvimento urbano, o uso e a ocupação do solo, casada principalmente com a política de transporte, mas também com saneamento e habitação, que era competência principalmente do governo municipal pela Constituição Federal. E do governo metropolitano – governo entre aspas, porque nós não temos, pela Constituição Estadual.
E caiu no limbo desde então. Já escrevi sobre isso, refleti muito: por que é que a gente jogou tanta competência para o município? E também tem o desenho da questão metropolitana, porque cada Estado tem uma ideia do que é uma metrópole. Aquilo é desenhado em cada estado e aí aconteceram essas coisas; numa certa hora, no Brasil, Manaus não era metrópole e Santa Catarina tinha cinco. A gente deixou isso para o poder local ou regional resolver. E hoje, sinceramente, acho que deveria estar na esfera federal. A Constituição de 1988 tirou muita coisa do poder central porque a ditadura era absolutamente centralizada, não tinha participação nenhuma e a gente sentia que o município precisava participar da democracia, era onde os moradores iam participar da elaboração da política urbana. A gente entendia isso, que cada cidade é uma cidade, diferente da outra, devido à região, ao clima...
Quando a gente foi para o governo federal, percebeu que poderia obrigar as prefeituras a fazer plano diretor, por exemplo. Mas como o município é autônomo, não poderíamos obrigar o município a cumprir, a aplicar, por exemplo, o Estatuto da Cidade, que é uma lei federal conquistada a duras penas. A questão urbana é federativa, e depende de um acerto dos três governos. O capital imobiliário é muito forte lá em cima, mas é absolutamente forte no município. É muito comum agentes do capital imobiliário virarem prefeitos ou vereadores, ou bancarem a campanha dos mesmos. E como a questão da terra sempre foi uma questão central no movimento e na agenda da reforma urbana, pode-se dizer que o governo federal tem, sem dúvida, um poder limitado no que se refere ao desenvolvimento urbano.
Nesse sentido, qual era a nossa ideia? Talvez fazer uma lei para as metrópoles, em nível federal, e talvez, mas não necessariamente, fazer capacitação e formação de quadros no poder público, para aplicação dos novos instrumentos jurídicos criados a partir da Constituição, quando se reconhece a função social da propriedade, a função social da cidade, o direito à moradia. Havia uma série de elementos novos, muito desconhecidos inclusive no Judiciário, como a prática atual está mostrando, e não existe aquela propriedade “absoluta” na qual a juíza se baseou para decretar o despejo do Pinheirinho. Não existe essa figura. Existe na cabeça dela e de muita gente, dos operadores de Direito no Brasil, até de muita gente pobre, que dizia “não, nós não estamos aqui legalmente, mas estamos legitimamente”. E eu falava “não, senhor, vocês estão legalmente”.
E nós lutamos, lutamos, conquistamos um monte de coisas. Temos um novo Marco Regulatório do Saneamento, temos o Estatuto da Cidade; com a nova Constituição, temos uma Lei de consórcios públicos, que foi votada em 2005, temos o Conselho das Cidades, Conselhos Técnicos, um aparato institucional novo, importante, mas a sociedade brasileira age como se isso não existisse. A sociedade. Porque estou cansada desse negócio de só “ah, a culpa é do governo”. Se um governo quiser melhorar a condição de circulação e transporte no seu município, um governo municipal, e proibir automóveis de circular, ele pode? Aqui em São Paulo tem o rodízio, mas isso não está resolvendo em lugar nenhum, principalmente aqui. Cercear a circulação de automóvel, mas investir na circulação de transporte coletivo – ônibus combinado com trem e metrô – é algo central, hoje é o principal na política urbana. Combinado ao uso do solo, você tem que ter lugar para o pobre morar. Entendeu? E esse lugar tem que ter transporte. Não é “põe pra fora da cidade”, o que não mudou muito com a política atual de habitação. Nós não mudamos o que era básico na lei de reforma urbana, que era a questão da função social da propriedade. Mas estamos desconhecendo que ela existe.
Essa situação para nós estava clara. A gente queria construir novos paradigmas. Assim, fazer um trabalho bem a la Paulo Freire...
Fórum – Combater o analfabetismo urbanístico, como a senhora fala...
Maricato – Exatamente. Outro dia, estava num debate com o Juca Kfouri, ele até deu risada. Uma pessoa lá perguntou: “você não gosta de futebol?”. Eu falei “gente, eu realmente tenho um problema com o futebol, que é o seguinte: se todo cidadão que conhece tão bem a seleção brasileira, de qualquer ano, o que aconteceu, quem era o técnico, quem era o massagista, qual foi o resultado do jogo, quem fez os gols, conhecesse o quanto tem de investimento na sua cidade e como é que esse dinheiro está sendo aplicado...”. Porque é um dinheiro sobre o qual se fazem os lobbies. E o automóvel, o sistema viário, as pontes, viadutos, que aí também entra uma empreiteira... Houve uma reserva de mercado para a construção pesada no Brasil, e ela é competente para fazer obra no mundo inteiro. Ela sabe trabalhar com muito conceito, por isso que foi construir estrada no Iraque...
Fórum – E na América do Sul, em vários lugares também...
Maricato – Em Miami, na África... Bom, mas quando o Olívio saiu, fiquei pensando que alguma coisa ia segurar, porque tivemos um movimento forte, com um pé dentro da Academia, nos Legislativos, começamos a ter gente ligada à reforma urbana; nos Executivos, muitas prefeituras começaram na década de 1980 e 1990 a fazer experiências novas no Brasil. Nós tínhamos nos profissionais uma visão nova, na área do Direito... Na área de arquitetura e urbanismo, praticamente criamos uma escola. O know-how de urbanização de favela no Brasil é respeitado no mundo inteiro. O Estatuto da Cidade é respeitado no mundo inteiro. Já fui falar na Índia sobre o Estatuto da Cidade para o governo central, mas sou honesta, falei que ele não está sendo aplicado no Brasil. Na África do Sul também falei. Não temos correlação de forças para aplicar a função social da propriedade, como foi pensado. No setor de saneamento, durante esse período que a gente criou a emenda de Reforma Urbana, tinha uma Frente Nacional do Saneamento.
Achei, depois do movimento de reforma urbana e depois desse pessoal no Ministério das Cidades, que nunca mais iríamos tamponar córrego, a não ser por uma medida absolutamente necessária. E eu estou cansada de ver o dinheiro do Ministério das Cidades fazendo impermeabilização do solo até dizer chega. Depois vão se queixar de enchente. Porque tapar córrego transfere a enchente de um lugar para o outro. Pensei que a gente tinha feito a diferença, mesmo que só em dois anos e meio, com o Olívio e aquela equipe. Ficou gente boa lá, mas acho que perdemos a luta, que é pela hegemonia do tema, do assunto. Quando eu digo “o Brasil mudou de agenda”, o André Singer tem razão, é porque mudou mesmo, porque não dá mais para um governo entrar sem manter Bolsa-Família, por exemplo. Mas as cidades estão sendo administradas com a política velha. Velha! Parece que nem nós passamos pelo governo.
Tudo bem, temos, pela primeira vez na história, no governo federal, subsídios para a baixa renda, a política do Minha Casa, Minha Vida... Mas acontece que, como não houve reforma fundiária, o dinheiro que chegou foi um dinheiro que alimentou a especulação imobiliária e o preço dos imóveis. Em 2010, naquele ano, depois do lançamento do Minha Casa, Minha Vida, o preço dos imóveis já subiu, disparou. Se você não tiver alguma política que freie os ganhos imobiliários, e há vários instrumentos para isso, no Plano Diretor, Imposto Progressivo, ZEIS (Zona Especial de Interesse Social), preempção, que estabelece que qualquer terra que vai ser vendida, desde que esteja sob direito de preempção, tem que ser oferecida primeiro para o poder público. Se ele não quiser, a pessoa tem que vender pelo mesmo preço para o privado. Isso faz uma diferença. Essas questões não foram aplicadas e o que a gente está vendo, mais do que nunca – talvez, só menos que no auge do BNH –, é uma especulação bárbara.
Fórum – Ou seja, existia uma ideia de se fazer esse investimento em moradias de baixa renda, destinadas a esse público, mas isso está sendo desvirtuado e acaba não suprindo o déficit habitacional do país.
Maricato – Porque 90% do déficit habitacional está situado na faixa de baixa renda, entre 0 e 3 salários mínimos. E aqui cabe explicar uma outra coisa de que nós tínhamos clareza absoluta: o mercado imobiliário brasileiro, até o Lula assumir – porque quando nós estávamos no Ministério das Cidades nós começamos a mudar esse quadro, mas ele mudou mesmo foi com o Minha Casa, Minha Vida – só produzia para acima de 10 salários mínimos. É um mercado que um autor, o Milton Vargas, chama de “artesanato de luxo”. É uma indústria que não era muito produtiva, esmagava a força de trabalho e aplicava muito no conspícuo, no consumo conspícuo.
O que é o consumo conspícuo? A pessoa projeta e coloca ali um Espaço Gourmet, o Child Care, o Fitness Center, pode ser tudo o simulacro, é o condomínio com clube, as torres com o clube dentro, e aí tudo muito bordado, fachada, tarará... Uma parte expressiva da classe média não entrava no mercado. Enquanto isso, você vê que funcionário da USP mora na favela ao voltar do campus da universidade, você vê que o policial militar mora em favela, percebe que tem pessoas que são funcionários públicos, têm segurança no emprego e não são clientes para o mercado imobiliário formal capitalista. É esse o capitalismo brasileiro.
Tínhamos uma proposta no Ministério das Cidades, que foi construída no Instituto Cidadania, na qual afirmávamos que se fossem feitas casas, moradias sociais para baixa renda, e a classe média ficasse sem alternativa, seria o mesmo que enxugar gelo. Isso nós já tínhamos experiência nas prefeituras. Então o que a gente precisava? De uma política para a classe média e uma política para a baixa renda. A política para a classe média era, do nosso ponto de vista, uma política de mercado. E a política para baixa renda, uma política pública. E o Minha Casa, Minha Vida aparentemente fazia isso, porque ele dá subsídio só para quem tem renda abaixo de 5 salários mínimos. Mas, mesmo quando é subsidiado quem constrói vai no teto daquilo que o subsídio permite.
Fórum – Se vai de 0 a 5 salários, as construtoras voltam os esforços pra faixa maior. No fim das contas, também vira uma política voltada para o mercado.
Maricato – É. E por que é que a gente fala voltada para o mercado? Quando o Minha Casa, Minha Vida veio, as maiores empresas do Brasil tinham terra. E elas ganharam muito com renda da terra. Todas as grandes têm um braço popular hoje, mesmo as de luxo têm. Então, essas grandes têm um estoque, e outras já estão precisando comprar terra. As médias, todas, e pequenas estão precisando comprar terra. E o movimento social ficou sem área até para ocupar. Por exemplo, os movimentos sociais urbanos que constroem casas, muitos deles da época da gestão Erundina, se tornaram especializados em mutirões habitacionais etc, e começaram a disputar terra com o próprio mercado na periferia.
Fórum – Agora, ao mesmo tempo, em São Paulo, existem essas operações urbanas e a elevação de preços dos imóveis da região central, afastando ainda mais os pobres para as periferias. Qual deve ser o papel dos movimentos sociais, é ocupar os imóveis vazios? Como podem se articular diante de um panorama diferente daquele de vinte, trinta anos atrás?
Maricato – Olha, eu posso ser processada se disser que os movimentos devem ocupar. Mas só queria dizer que, se os movimentos não ocupam, essa questão não tem visibilidade. Não, se não ocupam áreas valorizadas. Ocupar, pode, você vai ocupar área de proteção de mananciais? A lei não permite, mas pode. Quero dizer que ninguém vai tirar você de lá a não ser que seja uma coisa pontual. Mas vai ocupar um prédio na Prestes Maia que deve R$ 4 milhões de IPTU pra ver se consegue ficar... Ali, onde a lei permite, não se pode ficar; nas áreas de mananciais, onde a lei não permite, pode. Qual é a norma, a lei que existe neste país? É a de mercado, não é a norma jurídica. Lá, no centro, você não pode porque tem tudo lá, é um tesouro. É o melhor lugar, não tem nenhum local em que o transporte público é melhor, você não precisa ter carro.
Fórum – E em relação a essas novas centralidades em São Paulo, como a região da Berrini.
Maricato – Os americanos construíram a tese da máquina do crescimento, uma articulação de forças que vai conduzir o crescimento da cidade em um sentido. E nos EUA até as lideranças sindicais podem entrar na máquina do crescimento, quando uma cidade compete com as outras, por exemplo, para atrair investimentos, se faz uma coalizão em que todos apostam num determinado sentido do crescimento. Para a Berrini, o que a pesquisadora Mariana Fix e o João Whithaker mostraram é que houve um conjunto de forças que levou o mercado para essa região. O Lamparelli fala que a centralidade da cidade está ligada ao uso da elite e do mercado imobiliário. O centro perdeu centralidade, o Mappin já foi lugar em que as senhoras tomavam chá à tarde, iam ouvir violinos na confeitaria... O capital imobiliário foi para a Paulista e o centro degradou-se; depois foi para a Faria Lima, e a Paulista degradou-se; agora vai para a Berrini, e a Faria Lima começa a degradar. Tudo que é popular é degradado.
O motor é econômico. A fronteira da expansão imobiliária precisa se deslocar e você vê isso em qualquer cidade se expandindo. Em vez de aplicar onde é necessário, por prioridade social, vamos aplicar para produzir a nova centralidade e é lá que o capital imobiliário está.
Fórum – Esse capital imobiliário praticamente norteia as políticas públicas e temos marcos legais para que isso não ocorra. O que falta nessa equação?
Maricato – É a correlação de forças. O governo estadual usou uma força no Pinheirinho que, se não tivesse a repercussão que teve, inclusive em nível internacional, iria se repetir no Brasil inteiro, porque tem muita gente de olho em terras onde estão favelas. Não qualquer terra, mas terras valorizadas. Como o mercado imobiliário está “bombando”, creio que isso foi um ensaio.
Fórum – Existe uma questão em que a senhora toca, mas que não é muito abordada, que é o enfraquecimento dos cinturões verdes, que existiam em torno das cidades, e a relação disto com a força do agronegócio. Como ele muda a lógica do panorama nas cidades?
Maricato – Ele acaba dificultando ou inviabilizando a vida do pequeno. Por exemplo, o pequeno produzia arroz e hoje não tem mais máquina de beneficiamento perto de São Paulo, ficando nas mãos do grande e do médio. A Caixa Econômica Federal está fazendo um esforço para não levar os conjuntos habitacionais voltados para a população de baixa renda para o campo, fora da cidade. Mas as câmaras municipais estão pegando áreas rurais e declarando como área de expansão urbana. Daí você obriga o pequeno produtor a pagar IPTU, ou seja, quebra o pequeno produtor que planta próximo às cidades. O cinturão verde existe em São Paulo e é muito importante e seria importante também ter dentro das cidades essas áreas permeáveis à água de chuva para evitar as enchentes. Agora, quando ela sobe muito de valor, é muito difícil de segurar, principalmente para um pequeno proprietário.
O governo Lula teve duas iniciativas importantes ao garantir que um terço da merenda escolar venha da agricultura familiar e ao assegurar a compra da produção. Isso ajuda a permanência do pequeno produtor. Mas, para competir com o agronegócio, você precisa diminuir o custo do transporte do alimento, o que os europeus e americanos estão fazendo. Hoje, o alimento orgânico é caro, mas prefeituras como Suzano, Guarulhos, Mauá, estão produzindo orgânicos dentro da cidade, com alta produtividade. Isso seria o encontro do campo com a cidade que estamos precisando, a junção da cidade, do campo e do meio ambiente. E aí você pode ter cidade verticalizada, compacta? Pode. Mas com o transporte adequado e áreas permeáveis fazendo parte do tecido urbano. Na cidade compacta, você tem alta qualidade de infraestrutura e está furando essa cidade dispersa. Toda metrópole brasileira está cercada do loteamento fechado, que é uma figura ilegal. Pela lei, não poderia estar fechado. Mas ali moram juízes, promotores, donos de jornal...
Fórum – No caso de São Paulo, em particular, a crise é maior do que em outras cidades? Saiu uma pesquisa da Rede Nossa São Paulo que diz que 56% das pessoas gostariam de sair da cidade.
Maricato – Olha, fico impressionada com o nível de patologia urbana que a gente aguenta. Sabe aquela história de que, se você esquentar a água devagar até ferver, a rã, o sapo, não pula? Você já ouviu falar? Conheço uma filha de uma amiga minha que falou assim “se você morar numa cidade com uma relativa qualidade de vida e vier para São Paulo, você não fica”. Inclusive o professor Paulo Saldiva, da USP, está mostrando o impacto das doenças respiratórias com a alta concentração de poluentes no ar.
Depois, você tem as horas paradas. Como é que as pessoas aguentam? Uma hora e meia para chegar num lugar, uma hora e meia para voltar e as pessoas acham normal isso. Elas estão doentes. Não é possível aceitar isso. E o que é mais grave de tudo, ninguém mais defende o transporte coletivo. Ninguém mais, digo, coletivamente, em termos de classe, porque hoje os trabalhadores, de um modo geral, querem ou moto ou carro, podem ser velhos. Porque eles aprenderam que transporte público ou coletivo é maldição. Vai ver onde mais se gasta dinheiro? É em obra viária. O que é que você tem mandando na cidade? Bom, em primeiro lugar ninguém questiona, o automóvel. Ele está entupindo todas, todas as cidades. É suicídio. Não há o que fazer, alargar ruas, construir pontes, não adianta. É suicídio, o que está acontecendo. E o transporte coletivo foi derrubado nas décadas do neoliberalismo. Parou a política urbana, parou a política de habitação, de transporte e de saneamento. Bom, foi retomada agora a de habitação e saneamento, mas, sem política urbana, que seria o uso do solo mais essa infraestrutura principal.
Não tem o controle de uso e ocupação do solo, o automóvel não é questionado, o mercado imobiliário controla a legislação fundiária e imobiliária através da Câmara Municipal, e as grandes empreiteiras às vezes substituem a Secretaria de Planejamento e de Obras. Às vezes substituem literalmente a de Obras. Por quê? Porque o poder público não tem quadros, existe uma burocracia infernal e ao mesmo tempo uma condição de ilegalidade para quem fica de fora do mercado e das poucas obras públicas de habitação.
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