terça-feira, 10 de julho de 2012

A Revolta da Burguesia Assalariada


Slavoj Žižek, no London Review of Books, traduzido por Heloisa Villela

Como foi que Bill Gates se tornou o homem mais rico dos Estados Unidos? A riqueza dele não tem nada a ver com a Microsoft produzir bons programas a preços mais baixos que a competição, ou com ‘explorar’ seus trabalhadores com mais sucesso (a Microsoft paga um salário relativamente alto a seus trabalhadores intelectuais). Milhões de pessoas ainda compram programas da Microsoft porque a Microsoft se impôs quase como um padrão universal, praticamente monopolizando o mercado, como uma personificação do que Marx chamou de “intelecto geral”, com o que ele quis dizer conhecimento coletivo em todas as suas formas, da Ciência ao conhecimento prático. Gates privatizou eficazmente parte do intelecto geral e ficou rico ao se apropriar do aluguel deste intelecto.
A possibilidade de privatização do intelecto geral é algo que Marx nunca previu nos seus escritos a respeito do capitalismo (em grande parte porque ele negligenciou a dimensão social do capitalismo). Ainda assim, isso está no centro da luta atual sobre propriedade intelectual: na medida em que o papel do intelecto geral – baseado no conhecimento coletivo e na cooperação social – aumenta no capitalismo pós-industrial, a riqueza se acumula de forma desproporcional no trabalho gasto na sua produção. O resultado não é, como Marx parecia esperar, a autodissolução do capitalismo, mas a gradual transformação do lucro gerado pela exploração do trabalho em renda apropriada através da privatização do conhecimento.

O mesmo vale para os recursos naturais, cuja exploração é uma das principais fontes de renda do mundo. Existe uma luta permanente sobre quem fica com essa renda: os cidadãos do Terceiro Mundo ou as corporações ocidentais. É irônico que ao explicar a diferença entre trabalho (que produz valor excedente) e outras commodities (que consomem todo seu valor no uso), Marx tenha dado como exemplo o petróleo, uma commodity ‘ordinária’. Hoje, qualquer tentativa de ligar as flutuações do preço do petróleo às oscilações de seu custo de produção ou ao preço da exploração do trabalho não faria o menor sentido: o custo de produção é insignificante como proporção do preço que pagamos pelo petróleo, preço que na realidade é a renda que os donos do recurso podem extrair graças à oferta limitada de petróleo.

A consequência do aumento de produtividade causado pelo crescimento exponencial do conhecimento coletivo é uma mudança no papel do desemprego. É o próprio sucesso do capitalismo (maior eficiência, aumento de produtividade, etc.) que produz desemprego, tornando mais e mais trabalhadores inúteis: o que deveria ser uma bênção – menor necessidade de trabalho pesado – se torna uma maldição.
Ou, para explicar de outra maneira, a oportunidade de ser explorado em um emprego de longo prazo agora é experimentada como um privilégio.

O mercado mundial, como disse Fredric Jameson, é “um espaço onde todo mundo já foi um trabalhador produtivo e no qual o trabalho começou, em toda parte, a se precificar fora do sistema”. No atual processo de globalização capitalista, a categoria dos desempregados não se limita mais ao “exército industrial de reserva” de Marx; ela também inclui, como nota Jameson, “essas massas populacionais do mundo que ‘despencaram da história’, que foram deliberadamente excluídas dos projetos modernizadores do Primeiro Mundo capitalista e descartadas como casos terminais ou sem esperança: os chamados estados falidos (Congo, Somália), vítimas da fome ou de desastres ecológicos, os que caíram na armadilha pseudo-arcaica dos ‘ódios étnicos’, objetos da filantropia ou das ONGs ou alvos da guerra ao terror”.

A categoria dos desempregados foi, assim, expandida para incluir uma vasta esfera de pessoas, dos desempregados temporariamente aos que não podem mais conseguir emprego e estão permanentemente desempregados, aos habitantes de guetos e favelas (quase todos esses descartados por Marx como parte do lumpemproletariado), e finalmente todas as populações e estados excluídos do processo capitalista global, como os espaços vazios de mapas antigos.

Alguns dizem que esta nova forma de capitalismo oferece novas possibilidades de emancipação. Essa é a tese de “Multitude”, de Hardt e Negri, que tenta radicalizar Marx, afirmando que se nós simplesmente cortarmos a cabeça do capitalismo, teremos o socialismo. Marx, eles argumentam, estava limitado historicamente: ele pensou em termos de trabalho industrial centralizado, automatizado e organizado hierarquicamente. Como resultado, entendeu o “intelecto geral” como algo semelhante à agência de planejamento central; somente hoje, com o surgimento do “trabalho não-material”, uma mudança revolucionária se tornou “objetivamente possível”.
Esse trabalho não-material se estende entre dois polos:  do trabalho intelectual (a produção de ideias, textos, programas de computador, etc.) a trabalhos afetivos (desempenhados por médicos, babás e comissários de bordo). Hoje, o trabalho não-material é hegemônico, no sentido com que Marx proclamou, no capitalismo do século 19, que a produção industrial em larga escala era hegemônica: ele se impõe não através da força dos números, mas por desempenhar um papel-chave, emblemático de toda a estrutura.

O que emerge é um vasto novo domínio chamado de “commons”: conhecimento compartilhado e novas formas de comunicação e de cooperação. Os produtos da produção não-material não são objetos, mas novas relações sociais e interpessoais; a produção não-material é biopolítica, é a produção da vida social.
Hardt e Negri descrevem aqui o processo que os atuais ideólogos do capitalismo pós-moderno celebram como a passagem da produção material para a simbólica, da lógica da hierarquia centralizadora para a lógica da auto-organização e da cooperação multicentralizada.

A diferença é que Hardt e Negri são fiéis a Marx: eles tentam provar que ele estava certo, que o surgimento do intelecto geral é, a longo prazo, incompatível com o capitalismo. Os ideólogos do capitalismo pós-moderno afirmam exatamente o oposto: a teoria marxista (e a prática), argumentam, continua limitada pela lógica hierárquica do controle centralizado do estado e por isso não consegue lidar com os efeitos sociais da revolução da informação.

Existem boas razões empíricas sustentando o argumento deles: o que de fato arruinou os regimes comunistas foi sua incapacidade de se acomodar à nova lógica social sustentada pela revolução da informação. Eles tentaram dirigir a revolução, fazer dela mais um projeto em grande escala de um governo centralizado. O paradoxo é que o que Hardt e Negri celebram como uma oportunidade única para derrubar o capitalismo é comemorado pelos ideólogos da revolução da informação como o surgimento de um capitalismo novo, sem ‘fricção’.

A análise de Hardt e Negri tem alguns pontos fracos, o que nos ajuda a entender como o capitalismo tem conseguido sobreviver ao que deveria ser (em termos marxistas clássicos) uma nova organização da produção que o tornaria obsoleto. Os dois subestimaram a extensão do sucesso do capitalismo de hoje (ao menos no curto prazo) na privatização do intelecto geral, além de subestimarem a dimensão de como os trabalhadores, mais do que a própria burguesia, estão se tornando supérfluos (com um número cada vez maior de trabalhadores se tornando não apenas desempregados temporários, mas estruturalmente não-empregáveis).

Se o capitalismo antigo idealmente envolvia o empresário que investia (o seu ou emprestado) dinheiro na produção, que ele organizava e geria, e depois tirava lucro disso, um novo tipo ideal está surgindo hoje: não mais o empresário que é dono de sua companhia, mas um administrador especializado (ou um conselho de administração presidido por um CEO), que governa a empresa de propriedade dos bancos (também geridos por administradores, que não são donos do banco) ou investidores diversos.  Neste novo tipo de capitalismo ideal, a velha burguesia, tornada desfuncional, é reciclada como gerenciadora assalariada: os membros da nova burguesia recebem salários, e mesmo quando são donos de parte da empresa, ganham ações como parte de sua remuneração (“bônus” pelo seu “sucesso”).

Essa nova burguesia ainda se apropria da mais-valia, mas no formato (mistificado) do assim chamado “superávit salarial”: eles recebem bem mais que o “salário mínimo” do proletariado (quase sempre um ponto mítico de referência, cujo único exemplo real na economia global de hoje é o salário dos trabalhadores na indústria têxtil da China ou da Indonésia), e é esta distinção em relação proletário comum que determina o status da nova burguesia.

A burguesia no sentido clássico, assim, tende a desaparecer: capitalistas reaparecem como um subsetor de trabalhadores assalariados, como administradores qualificados para ganhar mais pela virtude de sua competência (por isso a avaliação pseudocientífica é crucial: ela legitima as disparidades).  Longe de se limitar aos administradores, a categoria de trabalhadores que ganha superávits salariais se estende a todo tipo de especialista, administradores, servidores públicos, médicos, advogados, jornalistas, intelectuais e artistas. O superávit assume duas formas: mais dinheiro (para gerentes, etc.), mas também menos trabalho e mais tempo livre (para – alguns – intelectuais, mas também para administradores do estado, etc.).

O processo de avaliação usado para decidir quais trabalhadores devem receber superávit salarial é um mecanismo arbitrário de poder e ideologia, sem conexão séria com a verdadeira competência; o superávit salarial existe não por razões econômicas, mas políticas: para manter uma “classe média” e preservar a estabilidade social.
A arbitrariedade na determinação da hierarquia social não é um erro, mas objetivo do sistema, com papel análogo ao da arbitrariedade no ‘sucesso de mercado’.

A violência não ameaça explodir quando existe muita contingência no espaço social, mas quando se tenta eliminar a contingência. Em “La Marque du sacré”, Jean-Pierre Dupuy trata a hierarquia como um dos quatro procedimentos (“dispositivos simbólicos”) que têm como função tornar não humilhante a relação de superioridade: a própria hierarquia (uma ordem imposta externamente que me permite experimentar meu status social mais baixo de forma independente do meu valor inerente); desmistificação (o procedimento ideológico que demonstra que a sociedade não é uma meritocracia, mas o produto de disputas sociais objetivas, que me permite evitar a conclusão dolorosa de que a superioridade de alguém sobre mim é resultado dos méritos e realizações do outro); contingência (mecanismo parecido, através do qual entendemos que nossa posição na escala social depende de uma loteria natural e social; os sortudos nascem com os genes certos, em famílias ricas); e complexidade (forças incontroláveis têm consequências imprevisíveis; por exemplo, a mão invisível do mercado pode me levar ao fracasso e o meu vizinho ao sucesso, mesmo que eu trabalhe muito mais e seja bem mais inteligente).

Ao contrário do que parece, esses mecanismos não contestam ou ameaçam a hierarquia, mas a tornam mais palatável, já que “o que dispara o tumulto da inveja é a ideia de que o outro não merece a sorte que tem e não a ideia oposta – a única que se pode expressar abertamente”. Dupuy tira desta premissa a conclusão de que é um grande erro pensar que uma sociedade razoavelmente justa, que se enxerga como justa, estará livre de ressentimento: pelo contrário, é nessas sociedades que aqueles que ocupam as posições inferiores encontrarão nas explosões violentas de ressentimento um veículo para seu orgulho ferido.

Isso está conectado ao impasse que a China enfrenta hoje: o ideal das reformas de Deng era introduzir o capitalismo sem uma burguesia (já que ela formaria a nova classe dominante); agora, porém, os líderes da China estão descobrindo dolorosamente que o capitalismo sem uma hierarquia estabelecida, possibilitada pela existência de uma burguesia, gera instabilidade permanente. Então, que caminho a China seguirá?

Os ex-comunistas estão emergindo como os administradores mais eficientes do capitalismo porque sua inimizade histórica com a burguesia como classe casa perfeitamente com a tendência atual do capitalismo de se tornar um capitalismo administrativo, sem burguesia – nos dois casos, como Stalin disse faz tempo, “os quadros decidem tudo”. (Uma diferença interessante entre a China e a Rússia de hoje: na Rússia, os professores universitários têm salários ridiculamente baixos – eles já são, de fato, parte do proletariado – enquanto na China recebem um superávit salarial confortável para garantir sua docilidade).
A noção de superávit salarial também coloca sob nova ótica os constantes protestos “anticapitalistas”.  Em momentos de crise, o candidato óbvio para apertar o cinto são as classes mais baixas da burguesia assalariada: protestos políticos são seus únicos recursos se quiserem evitar se juntar ao proletariado.
Apesar de seus protestos serem, nominalmente, dirigidos contra a lógica brutal do mercado, elas estão protestando, de fato, contra a erosão gradual de sua posição econômica privilegiada (politicamente).
Em “Atlas Shrugged”, Ayn Rand tem a fantasia de fazer greve contra capitalistas “criativos”, uma fantasia que encontra realização pervertida nas greves de hoje, quase todas sustentadas por “burguesias assalariadas” movidas pelo medo de perder o superávit salarial. Esses não são protestos proletários, mas protestos contra a ameaça de ser reduzido a proletariado.

Quem tem coragem de entrar em greve hoje, quando ter um salário fixo é, em si mesmo, um privilégio? Trabalhadores com baixos salários (o que resta deles) da indústria têxtil, etc., não; mas os trabalhadores privilegiados que têm emprego garantido (professores, empregados dos transportes públicos, policiais), sim. Isso também explica a onda de protestos estudantis: sua principal motivação é, sem dúvida, o medo de que a educação superior não garanta um superávit salarial mais tarde, na vida.
Ao mesmo tempo está claro que o grande renascimento de protestos no último ano, da Primavera Árabe à Europa ocidental, do Occupy Wall Street à China, da Espanha à Grécia, não deve ser descartado meramente como uma revolta da burguesia assalariada. Cada caso deve ser analisado de acordo com seus próprios méritos. Os protestos estudantis contra a reforma universitária na Grã-Bretanha são claramente diferentes dos distúrbios de agosto, que foram um carnaval consumista de destruição, uma verdadeira explosão dos excluídos.

Pode-se argumentar que os levantes no Egito começaram, em parte,  como uma revolta da burguesia assalariada (com jovens educados protestando por conta de sua falta de perspectiva), mas este foi apenas um dos aspectos de um protesto mais amplo contra um regime opressivo. Por outro lado, o protesto não mobilizou, realmente, trabalhadores mais pobres e camponeses e a vitória eleitoral dos islâmicos deixa clara a estreita base social do protesto secular original. A Grécia é um caso especial: nas últimas décadas, foi criada uma nova burguesia assalariada (especialmente na inchada administração estatal), graças à ajuda financeira da União Europeia, e os protestos, em boa parte, foram motivados pela ameaça do fim disso.

A proletarização das camadas mais baixas da burguesia casa, no oposto extremo, com a alta remuneração irracional de administradores e banqueiros do topo (irracional como demonstraram as investigações nos EUA, já que ela tende a ser inversamente proporcional ao sucesso da companhia). Ao invés de submeter essas tendências à crítica moralizante, devemos lê-las como sinais de que o sistema capitalista não é mais capaz de uma estabilidade autorregulada – em outras palavras, ele ameaça ficar fora de controle.

sábado, 16 de junho de 2012

Copa do Mundo e Jogos Olímpicos: “O espetáculo e o mito”  Raquel Rolnik

14 Jun 2012
Há evidências empíricas de que sediar grandes eventos esportivos traz desenvolvimento econômico e social?

Traz ganhos. A discussão é: ganhos para quê? E ganhos para quem? Porque, sim, mobiliza uma enorme quantidade de dinheiro e de investimentos. Não há a menor dúvida de que esses grandes eventos transformaram-se, sobretudo a partir do final dos anos 1980, numa espécie de constituição de branding: uma marca que é vendida associada à marca de uma cidade e de um país. Portanto, todas aquelas empresas que se associam a essa marca também são automaticamente promovidas no mercado internacional. E é uma estratégia bem-sucedida, porque o evento é visto por bilhões de pessoas, uma oportunidade única para se comunicar com essa audiência ou com esse público consumidor. É disso que se trata: de corporações e grandes negócios, um grande evento de marketing e de marcas associadas a ele.
Claro que, dependendo da cidade, do contexto e do país, eventualmente esses momentos são utilizados também para realizar projetos que beneficiam não só as pessoas que vão usufruir do evento naquele momento, mas também outras pessoas a longo prazo. Basicamente, Barcelona ficou notabilizada por utilizar os Jogos Olímpicos para implementar um projeto de renovação urbanística e se recolocar no cenário internacional de cidades em um momento em que a gente vivia um processo muito radical de reestruturação produtiva com a globalização. Barcelona era uma cidade industrial e portuária e estava perdendo completamente o seu lugar, porque esse lugar da indústria não estava mais se sustentando economicamente. Ao mesmo tempo, a gente também vive nesse momento a grande era dos reajustes estruturais, da retirada do governo central e dos grandes investimentos públicos. As cidades começam a entrar num jogo de autopromoção no cenário internacional para atrair investimentos externos e promover uma reengenharia da sua base econômica.

Quando se discute o legado desses eventos, sempre se menciona Barcelona-92. Há algo que se compare na história dos Jogos Olímpicos e das Copas do Mundo?
Barcelona estabeleceu uma espécie de paradigma de que os Jogos sempre se associam a um legado de transformação urbanística. Mas os projetos de intervenção urbanística não são neutros. Tem beneficiários e tem prejudicados. É importante distinguir as duas coisas.
Quando se conta a história de Barcelona, separa-se a experiência específica dos Jogos Olímpicos da história imediatamente anterior. Para entender Barcelona, é preciso entender que mais de uma década antes (dos Jogos) a cidade ganhou um governo autônomo socialista, num movimento que era importantíssimo para a Catalunha, de afastamento do controle autoritário e centralizado do franquismo. Trata-se de uma luta democrática e popular que durante pelo menos uma década fez um investimento radical na melhoria das condições de vida dos trabalhadores e de suas periferias, investiu na melhoria das condições urbanísticas desses bairros populares, investiu na moradia, aumentou tremendamente o grau de participação popular na gestão da cidade. Então, quando Barcelona desenha o seu projeto olímpico, isso não veio do nada. Não se abriu o céu e caíram as Olimpíadas, como está acontecendo no Brasil. Mesmo assim, houve resistência, houve questionamento, houve luta, houve transformação da pauta de intervenção como consequência dessas lutas e desses questionamentos. Só que ninguém conta essa parte da história. Essa parte da história sumiu.

Então o grande paradigma de legado associado às Olimpíadas só aconteceu porque já existia uma trajetória independente do evento?

Evidentemente. Você pode ver o caso de Londres agora (sede das Olimpíadas de 2012). O projeto de Londres também tem uma história muito mais longa de integração, de intervenção no East End, historicamente a região com condições urbanísticas mais precárias. Além da construção de um grande parque público, a maioria dos equipamentos olímpicos será desmontada e, no seu lugar, vai ter habitação, comércio e serviços, com uma cota de 35% para habitação social subsidiada. E também no caso de Londres houve questionamento, também teve debate público e também o projeto foi transformado em razão disso.
Eu diria que onde já existe um processo público de debate e de intervenção territorial sobre a cidade, as Olimpíadas aparecem como uma oportunidade a mais dentro de um caminho para implantar esse plano. Onde não tem nada, cai do céu um projeto que não tem absolutamente nada a ver. O caso do Brasil é emblemático. As cidades brasileiras passaram, depois da aprovação do Estatuto das Cidades, no ano 2000, a elaborar projeto de plano diretor, de planejamento participativo, pensando no futuro dessas cidades. Esses planos e projetos estão todos na gaveta ou foram rasgados.
O grande projeto olímpico do Rio de Janeiro foi elaborado conjuntamente e quase que diretamente por incorporadores privados que vão lançar um enorme investimento imobiliário na Barra da Tijuca e em Jacarepaguá, região na qual a intervenção urbanística pelo setor privado já estava acontecendo. Não mudou nada. Ao contrário, reforça a centralidade da Zona Oeste, uma centralidade de classe média, para poucos. É a extensão da Zona Sul. Não é o Rio de Janeiro que mais precisa de uma intervenção urbanística, como os bairros centrais. Tem tudo a ver com processos de valorização privada e muito pouco com o interesse público e uma revisão de tendências, de modo que os elementos perversos que existem no nosso urbanismo precário pudessem ser revertidos.

O legado inequívoco é a exceção dentro do histórico de grandes eventos esportivos?

Exatamente. Tem que entender isso no âmbito do que aconteceu no mercado de terras e no mercado imobiliário, com a globalização. O mercado imobiliário internacional passou a ser uma parte fundamental do circuito financeiro. A gente viveu uma “financeirização” do processo de produção de moradia e de cidades. Isso significa – e isso a gente viu com a crise americana – que os ativos imobiliários, mais do que representarem um valor de uso para as cidades, são um ativo financeiro passivo de especulação. Veja o que é Dubai. São operações de abertura de frentes para atração desses capitais financeiros. O megaevento nada mais é que um estande de vendas, fantástico e imediato, ainda por cima associado ao espírito do esporte, da solidariedade entre os povos, do nacionalismo segundo o qual o país vai mostrar ao mundo do que é capaz. Associado a todos esses elementos, é muito mais poderoso.

De onde vem esse mito da bonança socioeconômica associada à Copa do Mundo ou às Olimpíadas?

Se a gente olhar para a história dos grandes Jogos, eles tiveram lá as suas fases. Eles começam a ter muita importância, do ponto de vista cultural e geopolítico, no pós-guerra, quando se tratava de um espaço de conciliação entre as nações. Logo em seguida, no período da Guerra Fria, era muito importante para ver quem ia ganhar. Se eram os Estados Unidos, portanto a visão do livre mercado capitalista, ou se era o bloco soviético, e, posteriormente, a China. Era um encontro de forças, um cenário de reafirmação da Guerra Fria.
As Olimpíadas começam a ser associadas a uma intervenção na cidade nos Jogos de Los Angeles, em 1984, quando se mobiliza pela primeira vez o capital corporativo para fazer investimentos na cidade de forma mais permanente. E, desde então, toma conta. É um espaço basicamente das corporações, mediado pelos comitês olímpicos e comitês organizadores da Copa do Mundo, portanto também dos governos.
E aí, crescentemente, surgem as operações com base no tal do legado e na transformação urbanística. Mas isso, como falei, coincide com dois fenômenos: a diminuição do papel dos Estados para atendimento de demandas urbanísticas e, consequentememte, a entrada do capital privado na gestão; e as cidades competindo na arena internacional globalizada para ver quem capta investimentos de um excedente financeiro que fica pairando sobre o planeta procurando onde se alocar. Os Jogos Olímpicos e as Copas do Mundo abrem um espaço para que esse investimento aconteça, especialmente pelo que carregam também de elementos simbólicos, com a vantagem de ser um ambiente de consenso. Todo mundo gosta, todo mundo acha legal.

É por isso que existe essa expectativa de um legado transformador, quando, na verdade, o saldo convincente para os interesses difusos é raríssimo?

É um espetáculo que mobiliza corações. A mobilização é real. Você não só assiste. Você torce, você sofre, você chora. O evento trabalha com esses sentimentos e por isso é tão consensual. Tudo que se associa ao evento é contaminado por esse mesmo espírito.
Por outro lado, quando você tem uma intervenção física, as pessoas enxergam que alguma coisa foi feita. Em muitos casos, há melhorias. Se você fizer o balanço de ganhos e perdas, a maior parte da população não ganha tanto e muito poucos ganham muito, mas há transformações reais. Na África do Sul, mesmo com todas as limitações, a ligação de corredor exclusivo de ônibus para Soweto muda completamente a vida de quem vive em Soweto. Não é imaginário.
Mas tem efeitos perversos que não são lembrados, que não são tocados. Falando como relatora da ONU para o direito à moradia adequada, e em geral para os direitos humanos: o foco principal dos direitos humanos são os mais vulneráveis. Esses deveriam ser os prioritários e, em geral, são os prejudicados. São os que acabam carreando os efeitos perversos.

Sobre o envolvimento da sociedade civil, mencionado pela senhora como fator preponderante para o sucesso de Barcelona: nós aqui no Brasil ainda temos tempo de fazer isso, considerando o horizonte de 2014?

Já começa por quem formulou o projeto olímpico. Quem participou dele? E do projeto das cidades para a Copa? Esses projetos são definidos a portas fechadas entre os agentes políticos e as corporações envolvidas com a produção do evento. Ponto. Tudo o que nós construímos no Brasil de participação popular, de conselhos, de planejamento participativo, está sendo completamente deixado de lado no momento de definição das obras para a Copa e para as Olimpíadas.

A senhora vê diferença na forma de condução desses processos entre países centrais e os menos desenvolvidos?

Uma coisa é você fazer uma grande operação de renovação urbanística quando um grau básico de urbanidade já foi conquistado, como era o caso de Barcelona, ou como é o caso de Londres. Drante 50 anos, Londres fez uma política muito forte de investimento em habitação social, com 30% de todos os empreendimentos obrigatoriamente produzindo habitação popular, e por isso conseguiu praticamente zerar as condições precárias de moradia.
Outra coisa é a situação do Brasil, ou de Nova Délhi, na Índia, onde aconteceram os Commonwealth Games. Parece-me que, no nosso caso, esse tal legado deveria ser totalmente dirigido para constituir esse grau básico de urbanidade ou pelo menos ir na sua direção. Mas não. O que a gente viu é que as pessoas que moravam em condições precárias foram simplesmente expulsas, suas casas destruídas e nenhuma alternativa apresentada. E nós estamos repetindo aqui no Rio de Janeiro, neste momento, a mesma coisa. Em outras cidades brasileiras também. É assim: “Aqui vai ter um estádio? Ah, beleza, vamos saindo, vamos tirando tudo fora”, sem respeitar os direitos dessas pessoas e sem equacionar devidamente as alternativas.

Segundo o seu relatório, os impactos quanto a moradia se repetem, sobretudo nos países menos desenvolvidos, em razão da urbanização precária?

Exatamente. Os impactos se repetem e são mais graves. Mas isso aconteceu em Atenas também.

Essa nova tendência de sediar a Copa do Mundo em países periféricos diz alguma coisa sobre a FIFA (Federação Internacional de Futebol)?

A Fifa vai aonde está o dinheiro. Eu pude testemunhar isso ao preparar um relatório sobre os megaeventos e o direito à moradia e apresentá-lo à ONU. Eu me dirigi, como relatora, ao Comitê Olímpico Internacional e à Fifa para poder discutir com eles, ver como é que eles tratavam essa questão. Eram denúncias que eu recebia sistematicamente de expulsões forçadas em massa, tanto em Pequim como em Nova Délhi, como em vários lugares da África do Sul. E com o COI eu consegui estabelecer uma conversa, entender como é o processo, começar uma interlocução. A Fifa nem sequer me respondeu.

Em países periféricos não seria mais fácil empurrar certa exigências?

Não sei. Eu não fiz uma análise sobre como se deu a relação da Fifa, por exemplo, com o governo da Alemanha para a Copa de 2006. O que eu vi e que achei absolutamente escandaloso foi que a Fifa estabeleceu protocolos com os governo locais da África do Sul. Exigências do tipo: não se podia vender outra marca de cerveja, não apenas dentro dos estádios, mas num raio de quilômetros no entorno dos estádios. Foi estabelecida uma política específica com julgamento sumário no momento em que a pessoa pudesse cometer algum tipo de delito. De tal maneira que a gente pode chamar de estados de exceção e territórios de exceção. Eu não sei se essa é uma tendência no tempo, que foi piorando, ou se é porque se trata dos países emergentes. Mas, de fato, o estado de exceção tem-se ampliado. E, eu não preciso dizer, as denúncias de corrupção em relação à Fifa são notórias.

Em termos de transparência, como a senhora avalia a remoção e o reassentamento de pessoas no Brasil para a Copa e para as Olimpíadas?

É completamente obscuro. Você não consegue encontrar em nenhum lugar, dentro dos projetos formulados pelas cidades, quantas pessoas serão removidas, qual é o valor que está previsto, o que foi apresentado para elas, para onde elas vão. Quando vai haver uma remoção, a comunidade tem de conhecer o projeto, tem o direito de discutir o projeto, tem o direito de apresentar uma alternativa, de estabelecer uma negociação. Tem o direito de ter um organismo independente para a própria comunidade poder acompanhar esse processo, com assistência técnica e jurídica, por exemplo, da universidade.

A senhora está falando da lei brasileira ou internacional?

Eu estou falando dos tratados internacionais sobre o direito à moradia dos quais o Brasil é signatário e que, portanto, são plenamente aplicáveis aqui. Eu tive a oportunidade de visitar comunidades que serão objeto de remoção. As pessoas não sabem de nada, não sabem por que, não sabem quando. Os funcionários da prefeitura chegam e pintam as casas com um número, assim como os nazistas faziam na Segunda Guerra Mundial. Então você sabe que a sua casa é um alvo, mas não sabe nem quando nem o que vai acontecer com você, nem que espaço você tem para conversar. Isso está acontecendo no Morro da Providência (Rio de Janeiro), em Fortaleza, e em outras cidades, sem nenhuma transparência, numa violação clara do que dizem os tratados internacionais sobre a matéria.

Ricardo Teixeira costuma dizer que a CBF (Confederação Brasileira do Futebol) é uma entidade privada, a Copa é um evento privado, aparentemente dando a entender que ninguém tem nada a ver com isso. Como a senhora analisa esse argumento?

A CBF pode ser uma entidade privada, mas nossas cidades são públicas, pelo menos até onde eu entendo o conceito de cidade. A gente não pode simplesmente deixar que as nossas cidades, com o beneplácito e a participação dos nossos governantes, sejam transformadas por pautas definidas por uma entidade privada.

Nos estados e cidades que não costumam receber tanto investimento do governo federal, o gasto com estádios se justifica, eventualmente, pelas transformações urbanísticas associadas?

Essa é outra dimensão: o gasto público. O governo federal não está colocando recursos na construção de estádios, mas governos estaduais estão. Está-se usando subterfúgios e alguns jeitinhos para entrar dinheiro público. É o caso do Atlético Paranaense, cujo estádio vai ser ampliado e reformado com a venda de recursos de potencial construtivo. O potencial construtivo é definido no âmbito do planejamento da cidade, portanto é de propriedade pública. Tem também o próprio investimento e financiamento do BNDES com juros mais leves que os do mercado, o que configura também financiamento público.
A segunda questão é o gasto total. Vale a pena? A gente tem casos de cidades que se endividaram. Olha o que está acontecendo na Grécia. Uma parte tem a ver com o custo das Olimpíadas de Atenas e que não foi pago. Agora está-se discutindo isso na África do Sul. O balanço é vermelho. Eu vi um estudo que fez o mesmo cálculo no caso dos Commonwealth Games, na Índia. E num país que tem uma demanda de investimentos tão importante como o nosso, vale a pena gastar nesse tipo de coisa? Acho que a pergunta é totalmente procedente.

Na sua opinião, o que feriria mais o orgulho dos brasileiros? Um novo Maracanazo ou problemas de organização que pudessem prejudicar a imagem do país?

Tem uma dimensão no campo geopolítico internacional que é uma tensão entre os países emergentes e menos desenvolvidos e Europa e América do Norte. É uma tensão mais ou menos assim: “Ah, esses paisinhos emergentes não sabem organizar nada, são todos corruptos”.
Tem uma pauta muito importante que é a afirmação dos países de que podem, sim, organizar grandes eventos. Isso foi extremamente importante para a África do Sul e é extremamente importante para o Brasil no cenário internacional, porque esses países estão tentando se colocar como contrapeso político numa História de hegemonia do mundo. Não é só de nacionalismo bobo, é também uma tensão real entre países. Quem manda no planeta? Acho que o Brasil está-se colocando numa posição de liderança dos excluídos. Esse componente é também muito importante. Para o cidadão brasileiro, evidentemente, as emoções de ganhar ou perder um jogo são terríveis.Pelo amor de Deus, só falta a gente perder essa final no Maracanã, vai ser muito deprimente. Mas do ponto de vista da geopolítica internacional, o impacto de organizar mal ou bem vai ser mais importante. A questão central é: para quem?

Eu gostaria que a senhora respondesse à sua pergunta. No Brasil, a quem vai beneficiar? Qual a sua expectativa?

Eu tenho grandes dúvidas. Pelo andar da carruagem, esta é uma operação que beneficia algumas grandes corporações e empresas, que vão conseguir vender produtos e serviços, algumas nacionais, outras multinacionais. E vai encher os cofres da Fifa e da CBF e dos seus dirigentes.
Vai ter alguma coisa pontual, algum corredor de ônibus que vai beneficiar a população que não tinha um ônibus bom, alguma reforma de espaço público em que uma parte da população vai encontrar um lugar agradável em cidades que são geralmente desagradáveis, algumas operações sobre assentamentos informais. Mas o centro da agenda, a balança dos ganhos e perdas é que é a questão

http://raquelrolnik.wordpress.com/2011/08/12/copa-do-mundo-e-jogos-olimpicos-o-espetaculo-e-o-mito/

sexta-feira, 15 de junho de 2012

É verdade!

"Verdade não é para agredir. Não é para ferir. Não é para machucar.
Confunde-se verdade com grosseria, com preguiça, com indisposição.
Ser honesto é cuidar do que se diz e como se diz. O importante é não mentir.
Custa muito ser gentil? Custa sim! Custa pensar duas vezes, desejar duas vezes, amar duas vezes.
A grosseria que é de graça.
Verdade é feita para ajudar. Não há maior verdade do que a delicadeza."

(Fabrício Carpinejar)

segunda-feira, 11 de junho de 2012

terça-feira, 29 de maio de 2012

PSOL recorre ao MP contra compra de terreno pela prefeitura

Os vereadores Eliomar Coelho e Paulo Pinheiro (PSOL) recorreram ao Ministério Público a fim de impedir a venda do terreno da Tibouchina, em Jacarepaguá, para a prefeitura que pretende, ali, reassentar a comunidade Vila Autódromo. Segundo os parlamentares da bancada do PSOL no Legislativo, o preço do terreno subiu 178% em relação a primeira avaliação.
Os vereadores observam que estudo da GEO Rio indica que 70% do terreno foi classificado como área de risco. O local era uma antiga área de mineração, alvo de descomissionamento conforme Lei 90/2008 – de autoria do mandato Eliomar Coelho – com risco ambiental já caracterizado. A comunidade está ameaçada de remoção e reassentamento em função de obras vinculadas aos megaeventos (Copa 2014 e Olimpíadas 2016).
Os vereadores apontam motivações não esclarecidas para o reassentamento da comunidade que consta do projeto olímpico apresentado pela Aecom – empresa vencedora do concurso do IAB. Os parlamentares assinalam a ausência de análise de alternativa técnica e sustentam que a urbanização e regularização da comunidade seria menos dispendiosa que o reassentamento integral.
A prefeitura chegou a adiar a operação de compra, por R$19,9 milhões, do terreno da Tibouchina Empreendimentos. A decisão foi anunciada depois da veiculação de denúncia pelo jornal O Estado de S. Paulo sobre doações para o prefeito Eduardo Paes, no valor de R$ 260 mil, e para seu chefe de gabinete, Luiz Antonio Guaraná, no valor de R$ 45 mil, durante a campanha eleitoral de 2008, por parte das empresas Rossi Residencial e PDG Realty, que controlam a Tibouchina.
Um levantamento feito pelos vereadores Eliomar Coelho e Paulo Pinheiro detectou outras transações que favoreceram os secretários Pedro Paulo Carvalho Teixeira, da Casa Civil, Rodrigo Bethlem, da Assistência Social e Jorge Bittar, da Habitação, nas eleições de 2010. Os dois primeiros (do PMDB) receberam doações de R$ 70 mil, cada um, e Bittar (PT) recebeu R$ 30mil. Vale destacar que os três foram eleitos deputados federais naquele pleito e estão licenciados de seus mandatos para comandar secretarias que atuam nos processos de remoção que vem ocorrendo na cidade.

Ego


quarta-feira, 23 de maio de 2012

Escola pública: crônica de uma morte anunciada


Dificilmente você sai de um dia de trabalho em uma escola pública ilesa. O exercício de dar aula não é tão simples como alguns podem pensar. Sempre escuto alguém falando que ainda quer dar aula um dia, pois tem muito conhecimento sobre um determinado assunto ou porque quer saber como seria a experiência de fazer um bem para o outro. Dar aula é mais do que transmissão de conhecimento ou vontade de fazer algum bem. Principalmente se você faz disso a sua profissão, mais do que uma experiência ou um bico.

Na atual conjuntura, a sala de aula tem sido definitivamente a melhor parte do trabalho. Claro que os problemas são muitos. Alunos que não sabem ler nem escrever no ensino médio, que acordam às 4 horas da manhã para trabalhar e emendam nos estudos, que não tem hábito de ler, que não tem dinheiro para livro( porque esses custam uma fortuna no país) e coisas do tipo. No entanto, a maior dificuldade de dar aula na rede pública tem sido dialogar com a lógica que tem regido esse sistema.

Para resumir, a lógica é a de acabar com a escola pública. Lentamente. De diversas formas. As vezes, quem está ali, no meio desse turbilhão de eventos, preocupado em dar conta da própria sobrevivência, pulando de escola em escola, não consegue perceber o que há por trás de algumas medidas. Já olhares mais atentos revelam uma realidade assustadora para o futuro da educação pública do estado do Rio de Janeiro. Ela é massacrada em grande escala, com opções políticas retrógradas em termos de investimentos e prioridades e, no seu cotidiano, ou seja, dentro da escola, é que esse modelo se revela.

Com a atual política de indicação de diretores e com a desvalorização da educação, sobra muito pouco do que se espera de um ambiente democrático dentro das escolas. As regras, previamente definidas por uma secretaria de educação burocrática, são repassadas como ordens para as escolas. Para tentar te forçar a cumprir uma ordem que você ou desconhece, ou não concorda, o governo está oferecendo uma gratificação. Ou seja, você faz o que foi mandado e no final você ganha mais um dinheiro (diga-se de passagem, uma merreca, totalmente indigno para o salário de qualquer profissional, de qualquer área). Se algum professor se recusa a fazer, muitas vezes seguindo deliberações de assembléias, legítimos espaços de representação da categoria, você é (pasmem) acusado de estar PREJUDICANDO  a escola, por não estar cumprindo uma ou outra deliberação, que, nosso entender, em nada vai ajudar na sua melhoria, que confunde as atribuições de professores com os da secretaria e que sobrecarrega os profissionais de trabalho.  A sua atenção é chamada pela direção, até numa tentativa de colocá-lo contra os seus companheiros de trabalho, como se a SUA atitude estivesse prejudicando o bom funcionamento da escola, leia-se: o recebimento da tal gratificação que está atrelado a tarefas meramente burocráticas, que muitas vezes tomam o pouco tempo do planejamento do professor para tal.

Nessas horas, você tem que manter a calma. O trabalho pedagógico passa então da sala de aula para ser direcionado a um colega de trabalho. Colega esse que se apresenta falando mal do sindicato, mal da greve e favorável a gratificações por metas. O trabalho é árduo nessas horas. Você tem que começar do começo. Desconstruir.  Mas como eu disse, dar aula não é somente transmitir conhecimento nem fazer o bem. É ter visão. Entender do processo histórico e do atual momento político criticamente, para que então, contextualizado, você possa emitir alguma opinião sobre os acontecimentos. Na base da gratificação, o nível da conversa apela para os sentidos mais mesquinhos dos seres humanos e foge da real discussão, que é a educação pública de qualidade.

 Não há nada de tão complexo nesse debate. O primeiro passo para entender o que acontece é pensar coletivamente. Se cada um pensar somente no seu, estratégia antiga do capitalismo, não tem muito avanço.Assim, você inverte a lógica do argumento. Ou seja, a sua postura individualista prejudica a educação, e não a minha de pensar no coletivo. A outra é lembrar que gratificação divide as pessoas enquanto aumento real de salário valoriza o trabalho dos educadores e profissionais da área, então não vale a pena se degladiar por isso. Terceiro, enquanto não encontrarem outro instrumento mais eficaz, a greve ainda é um recurso fundamental, garantido por lei, de pressão e organização dos trabalhadores, frente à governos alheios a uma transformação séria na Educação, então as pessoas não podem ser punidas por tal.   
Depois dessa breve explanação, o tom de ameaça mudou. Que diferença faz o saber, não é mesmo?
Mais um exemplo, igual a vários outros, do descaso dos Estados com uma parte da população. Adivinha qual parte?


quarta-feira, 16 de maio de 2012

O panorama das cidades doentes

 A urbanista Ermínia Maricato fala sobre sua experiência na administração pública, a força do capital imobiliário e por que o Estatuto das Cidades e outros instrumentos legais não são aplicados para beneficiar a população mais pobre

http://www.revistaforum.com.br/conteudo/detalhe_materia.php?codMateria=9420/O%20panorama%20das%20cidades%20doentes

Por Adriana Delorenzo e Glauco Faria
Fórum – A senhora participou de duas experiências marcantes no poder público; a primeira, como secretária do Desenvolvimento Urbano da prefeitura de São Paulo, na gestão de Luiza Erundina (1989-1992); a segunda, no Ministério das Cidades. Como situar essas duas experiências e os dois contextos na discussão sobre as cidades no Brasil?
Ermínia Maricato – Eu estava na universidade, no movimento de reforma urbana, quando dava assessoria voluntária para a primeira bancada de vereadores do PT. Tinha os vários profissionais que davam assessoria, como o Firmino Fecchio, que depois foi para a Secretaria Nacional de Direitos Humanos, junto com o Paulo Vanucchi, e outros profissionais. E essa coisa de dizer que o técnico despolitiza, não concordo com isso, acho que existe um técnico adequado à posição política. E não é verdade que o plano da política é absoluto. Quer dizer, se você tem uma proposta para a cidade, tem que entender como implantar, e, principalmente, se não tem a seu favor a corrente do rio, precisa conhecer muito pra conseguir implantar uma proposta que vá em direção diferente. Tem essa discussão de que a Dilma seria técnica e não política. Acho que ela é muito técnica e competente, e é de esquerda. Se ela está conseguindo fazer as coisas, é outra discussão.
Nós éramos, desde o nascimento do PT, técnicos que conseguíamos – como digo no livro O Impasse da política urbana no Brasil (Editora Vozes) – fazer propostas, o que para um técnico era um sonho porque a gente queria poder implementar determinados projetos, o que era impossível, inclusive na universidade. E lá a gente tinha essa diversidade, uma cultura interdisciplinar, aprendi demais com o pessoal de transportes, de trânsito, com o pessoal de meio ambiente, com as pessoas do saneamento... Eu estava muito feliz porque nós tínhamos então uma discussão que era política e, ao mesmo tempo, especializada. E ali se reunia todo mundo de todos os cantos que tinha uma utopia e não conseguia realizar, pessoas que trabalhavam em órgãos de governo, dentro do Estado e tínhamos aquela ideia de que tudo podia ser mais barato, tudo podia ser melhor, mais sustentável, mais democrático, em cada uma das nossas especialidades.
Conheci a [Luiza] Erundina nesse período e ela me convidou para ser secretária. Houve uma disputa complicada... O município é de fato muito mais difícil do que o próprio governo federal – não para o presidente, provavelmente - porque você está no local onde falta moradia, não está elaborando uma discussão que vai passar pelo Congresso lá em cima, e a Erundina, no movimento social, vinha de uma luta, na década de 1980, muito acirrada. Uma década que foi marcada primeiro pela contenção das políticas sociais; já tinha o rumo do neoliberalismo, sem ele estar explícito como ficou no Consenso de Washington em 1989. O mundo vinha da reestruturação produtiva do capitalismo, que o [David] Harvey nota, no ano de 1973, como uma espécie de ano em que se tem uma virada. Vinha de um PIB muito alto na década de 1970, mantido a essa altura principalmente pela construção civil, que construía muita moradia e muita infraestrutura pelo Brasil todo. Era a década do milagre brasileiro da ditadura. Havia também um movimento político extraordinário que eram os movimentos urbanos, na década de 1970 eles começam a se desenvolver no Brasil e depois tivemos as greves operárias. Havia o operário de um novo ciclo, concentrado no ABC, e o declínio da ditadura e a emergência de uma sociedade civil que estava querendo abertura e formulando propostas.
Ao mesmo tempo, as cidades iam piorando, as décadas de 1980 e 1990 foram terríveis para o destino das cidades. A década de 1970 também, porque o regime militar rebaixou salários, os ganhos da força de trabalho, embora do ponto de vista da formulação da política urbana, ela era mais avançada do que atualmente, até – tinha uma agência nacional de transporte urbano, o setor de saneamento, de habitação, que foi reeditado agora no governo Lula.

Fórum – Função de planejamento Estado que desapareceu durante o apogeu do neoliberalismo.
Maricato – Em termos de planejamento, o regime militar foi pródigo em fazer planos diretores, teve uma fábrica de planos diretores. Mas, na verdade, era uma coisa que não se implantava, também não é muito diferente do que é agora, quando temos é essa superestrutura jurídica urbana e estamos vendo que não se aplica, um exemplo é o Pinheirinho, uma mostra de que o juiz pode fazer o que quiser com a lei, até desconhecer a legislação.
Quando Erundina me convidou, tive que inverter o trabalho da Secretaria. As secretarias, as prefeituras no Brasil, são todas voltadas para a cidade legal, a cidade do mercado, e nós vínhamos de uma tradição acadêmica e ativista na cidade “ilegal”. Queríamos trazer essa cidade para o centro da política urbana. E a Erundina, ninguém mais do que a Erundina, tinha uma prática nessa área... Segurou um despejo, ela segurou, enfrentou a polícia. A nossa situação era muito difícil, a Câmara contra, a mídia toda contra, queríamos mudar as coisas, mas não tínhamos uma correlação de forças que nos ajudasse, e o próprio partido estava na direção também contrária em alguns momentos. Talvez se tivéssemos feito a aliança que alguns queriam, teríamos nos saído melhor, mas não me arrependo de nada do que fizemos. Fomos muito coerentes o tempo todo com tudo que a gente pregava, mas a vitória naquela eleição foi uma surpresa, todo mundo sabe disso, e cada um de nós vinha com tantos sonhos... Foi muito difícil mudar a máquina, implementar o que a gente queria. Tivemos realmente muita oposição.
E é engraçado, passados dois, três anos do governo Erundina, onde chegávamos éramos recebidos com um respeito impressionante. Houve uma volta por cima em relação àquela oposição que dizia que a gente era inexperiente e, na verdade, quando olho pra trás, acho que foi feita muita coisa, pelo menos na nossa área houve um reconhecimento internacional. A equipe era muito boa, o Nabil Bonduki era titular da Superintendência de Habitação de Interesse Social – que era uma espécie de apêndice da Secretaria e se tornou um órgão central. Por quê? Porque o governo no Brasil desconhecia – e ainda desconhece – o ilegal, o informal, parece que favela é uma ocorrência menor. O próprio IBGE não mede, subdimensiona o número de pessoas que moram em habitação subnormal no Brasil. E, no entanto, passa de 20 milhões segundo o IBGE, de fato, chega a quase 30, é um país todo que mora em favela e loteamentos clandestinos.
Por que é que existia essa superintendência de habitação popular na Secretaria de Habitação? Porque as favelas pegavam fogo, porque muitas estavam na linha das obras, era um apêndice para lidar com os pobres, moradores de rua, favela, loteamentos ilegais, com as emergências. Enquanto não tinha emergência, ninguém ligava. É como eu digo: quais são as favelas que são despejadas hoje? Só as que estão em terra que têm valor de mercado.

Fórum – Em São Paulo, isso foi feito em diversas gestões, na do Jânio Quadros, por exemplo... 
Maricato – Nessas áreas. E na periferia ele fazia urbanização. Já fui dar aulas em universidades de caráter conservador, onde os estudantes falavam “mas a Erundina ajudou os favelados a se consolidarem”. Então, há muito desconhecimento sobre as cidades brasileiras, sobre o urbano no Brasil. Muito. Minha esperança era que o Ministério das Cidades fosse mudar esse quadro. Não a curto prazo, porque não se muda isso a curto prazo. Quantas pessoas sabem que você tem 30% da população em favela em Fortaleza, mais do que isso em Salvador, mais do que isso em Recife? Quantas pessoas sabem disso? Aí, quando você olha a cidade formal, a legislação, e os órgãos que administram o quadro construído, vai ver o oposto.  Leis ultradetalhadas, uma superburocracia que acho que não tem na Suíça... Apesar de que, na Suíça, o uso do solo, como na Holanda, na Alemanha, é absolutamente rigoroso, o Estado tem o controle absoluto. Não tem essa conversa de você deixar terra para engordar, sem função, para especular.
Bom, então, acho que a gente fez uma gestão muito inovadora na cidade de São Paulo. Mas era muito cedo, realmente, para aquilo que fizemos.

Fórum – E depois, no Ministério das Cidades, que já era outro momento, como foi a experiência?
Maricato – Quando a gente estava em São Paulo, o Guiomar Matos, que era secretário de Obras, nos ensinava como o tamponamento de córregos era um desastre na história de São Paulo. E aí a gente aprendia muito e pensava “bom, mas então a marginal do rio é um erro”. Ocupar córrego, pelo Código Florestal, também é um erro. É incrível que as secretarias de Meio Ambiente, muitas, neste país, deixam fazer asfalto em beira de rio e não deixam fazer moradia.
Começamos a aprender uma série de coisas e o quanto era burocrática a nossa máquina pública. Por que era tão burocrática? Porque você tem uma ambiguidade na aplicação da lei. O [episódio do despejo no] Pinheirinho mostrou isso: há uma total arbitrariedade na aplicação da lei. Você tem fraude de registro no Brasil, que é muito mais norma do que exceção. Há essa tensão na aplicação da lei. Existe um ardil na sua aplicação. E é absolutamente contraditório. Imagine se você levasse a sério a lei do zoneamento e o plano diretor? Em certos casos, se eu aplicar a lei de zoneamento, vai ser pior. Por exemplo: se existem quase 2 milhões de pessoas morando ilegalmente na área de proteção dos mananciais, onde você põe esse povo? Se de repente você fala “vamos cumprir a lei”, tira essas pessoas e não deixa entrar mais ninguém. Você põe onde e como é que você vai impedir a entrada? O povo não evapora. Ele vai morar em algum lugar. Muitas pessoas estão morando em áreas de proteção ambiental porque estas não interessam ao mercado imobiliário. E elas são invisíveis.
Quanto ao Ministério das Cidades, fui para a equipe de transição, e sabia o que o Lula queria de mim, porque nós tínhamos feito o Projeto Moradia, e, nele, estava a ideia de criação do Ministério das Cidades. Quando acabou essa experiência na Prefeitura, a Erundina teve 70 processos e eu tive três ou quatro e fui muito bem defendida, por gente como José Afonso da Silva, Márcio Thomaz Bastos, Paulo Lomar, Sérgio Renault, e havia um grupo de pessoas me ajudava a pagar. E é impressionante como no Brasil os corruptos nos acusam.
Então, tinha prometido a mim mesma que eu não voltaria ao Poder Público. Mas fiquei no Ministério das Cidades, que para qualquer urbanista é um sonho, participar da criação e depois implementar, com o Olívio [Dutra] à frente. E aí foi muito diferente a experiência, porque o Olívio tem uma postura de maior tranquilidade diante dos conflitos do que eu tinha, além de muita experiência. E ele tinha muita confiança em mim e na minha capacidade de direcionamento técnico e político no Ministério. A equipe era maravilhosa, tinha um lado de ativista, uma boa parte da equipe tinha um lado de acadêmico, com títulos, e o lado profissional. Já tinham passado pela administração pública, porque a primeira experiência no Poder Público é absolutamente necessária para você não levar um susto com a burocracia, com os pequenos conflitos, as pequenas disputas de poder e tal... Pequenas, às vezes nem tanto... (risos)
Foi um momento interessante, muito novo, a questão urbana era nova, e a gente sabia que estava correndo contra o tempo, que aquilo podia acabar, aquela lua-de-mel da gente com a gente mesmo. Eram discussões maravilhosas, chegamos a fazer, por exemplo, um manual para auxiliar os deputados a fazer emendas mais necessárias de acordo com a política urbana em cada região do país etc. Mas o asfalto ganhava... o asfalto dá muito voto. E ficamos às vezes administrando, como falei, metade do orçamento do Ministério para emendas.
Quando o Olívio saiu, decidi ir embora porque já havia uma disputa pesada nos três primeiros anos do governo Lula. A disputa era pela macroeconomia, pela orientação financeira do governo. A gente não tinha dinheiro para aplicar e, obviamente, queríamos recuperar a política urbana propriamente dita, esta que é o desenvolvimento urbano, o uso e a ocupação do solo, casada principalmente com a política de transporte, mas também com saneamento e habitação, que era competência principalmente do governo municipal pela Constituição Federal. E do governo metropolitano – governo entre aspas, porque nós não temos, pela Constituição Estadual.
E caiu no limbo desde então. Já escrevi sobre isso, refleti muito: por que é que a gente jogou tanta competência para o município? E também tem o desenho da questão metropolitana, porque cada Estado tem uma ideia do que é uma metrópole. Aquilo é desenhado em cada estado e aí aconteceram essas coisas; numa certa hora, no Brasil, Manaus não era metrópole e Santa Catarina tinha cinco. A gente deixou isso para o poder local ou regional resolver. E hoje, sinceramente, acho que deveria estar na esfera federal. A Constituição de 1988 tirou muita coisa do poder central porque a ditadura era absolutamente centralizada, não tinha participação nenhuma e a gente sentia que o município precisava participar da democracia, era onde os moradores iam participar da elaboração da política urbana. A gente entendia isso, que cada cidade é uma cidade, diferente da outra, devido à região, ao clima...
Quando a gente foi para o governo federal, percebeu que poderia obrigar as prefeituras a fazer plano diretor, por exemplo. Mas como o município é autônomo, não poderíamos obrigar o município a cumprir, a aplicar, por exemplo, o Estatuto da Cidade, que é uma lei federal conquistada a duras penas. A questão urbana é federativa, e depende de um acerto dos três governos. O capital imobiliário é muito forte lá em cima, mas é absolutamente forte no município. É muito comum agentes do capital imobiliário virarem prefeitos ou vereadores, ou bancarem a campanha dos mesmos. E como a questão da terra sempre foi uma questão central no movimento e na agenda da reforma urbana, pode-se dizer que o governo federal tem, sem dúvida, um poder limitado no que se refere ao desenvolvimento urbano.
Nesse sentido, qual era a nossa ideia? Talvez fazer uma lei para as metrópoles, em nível federal, e talvez, mas não necessariamente, fazer capacitação e formação de quadros no poder público, para aplicação dos novos instrumentos jurídicos criados a partir da Constituição, quando se reconhece a função social da propriedade, a função social da cidade, o direito à moradia. Havia uma série de elementos novos, muito desconhecidos inclusive no Judiciário, como a prática atual está mostrando, e não existe aquela propriedade “absoluta” na qual a juíza se baseou para decretar o despejo do Pinheirinho. Não existe essa figura. Existe na cabeça dela e de muita gente, dos operadores de Direito no Brasil, até de muita gente pobre, que dizia “não, nós não estamos aqui legalmente, mas estamos legitimamente”. E eu falava “não, senhor, vocês estão legalmente”.
E nós lutamos, lutamos, conquistamos um monte de coisas. Temos um novo Marco Regulatório do Saneamento, temos o Estatuto da Cidade; com a nova Constituição, temos uma Lei de consórcios públicos, que foi votada em 2005, temos o Conselho das Cidades, Conselhos Técnicos, um aparato institucional novo, importante, mas a sociedade brasileira age como se isso não existisse. A sociedade. Porque estou cansada desse negócio de só “ah, a culpa é do governo”. Se um governo quiser melhorar a condição de circulação e transporte no seu município, um governo municipal, e proibir automóveis de circular, ele pode? Aqui em São Paulo tem o rodízio, mas isso não está resolvendo em lugar nenhum, principalmente aqui. Cercear a circulação de automóvel, mas investir na circulação de transporte coletivo – ônibus combinado com trem e metrô – é algo central, hoje é o principal na política urbana. Combinado ao uso do solo, você tem que ter lugar para o pobre morar. Entendeu? E esse lugar tem que ter transporte. Não é “põe pra fora da cidade”, o que não mudou muito com a política atual de habitação. Nós não mudamos o que era básico na lei de reforma urbana, que era a questão da função social da propriedade. Mas estamos desconhecendo que ela existe.
Essa situação para nós estava clara. A gente queria construir novos paradigmas. Assim, fazer um trabalho bem a la Paulo Freire...

Fórum – Combater o analfabetismo urbanístico, como a senhora fala...
Maricato – Exatamente. Outro dia, estava num debate com o Juca Kfouri, ele até deu risada. Uma pessoa lá perguntou: “você não gosta de futebol?”. Eu falei “gente, eu realmente tenho um problema com o futebol, que é o seguinte: se todo cidadão que conhece tão bem a seleção brasileira, de qualquer ano, o que aconteceu, quem era o técnico, quem era o massagista, qual foi o resultado do jogo, quem fez os gols, conhecesse o quanto tem de investimento na sua cidade e como é que esse dinheiro está sendo aplicado...”. Porque é um dinheiro sobre o qual se fazem os lobbies. E o automóvel, o sistema viário, as pontes, viadutos, que aí também entra uma empreiteira... Houve uma reserva de mercado para a construção pesada no Brasil, e ela é competente para fazer obra no mundo inteiro. Ela sabe trabalhar com muito conceito, por isso que foi construir estrada no Iraque...

Fórum – E na América do Sul, em vários lugares também...
Maricato – Em Miami, na África... Bom, mas quando o Olívio saiu, fiquei pensando que alguma coisa ia segurar, porque tivemos um movimento forte, com um pé dentro da Academia, nos Legislativos, começamos a ter gente ligada à reforma urbana; nos Executivos, muitas prefeituras começaram na década de 1980 e 1990 a fazer experiências novas no Brasil. Nós tínhamos nos profissionais uma visão nova, na área do Direito... Na área de arquitetura e urbanismo, praticamente criamos uma escola. O know-how de urbanização de favela no Brasil é respeitado no mundo inteiro. O Estatuto da Cidade é respeitado no mundo inteiro. Já fui falar na Índia sobre o Estatuto da Cidade para o governo central, mas sou honesta, falei que ele não está sendo aplicado no Brasil. Na África do Sul também falei. Não temos correlação de forças para aplicar a função social da propriedade, como foi pensado. No setor de saneamento, durante esse período que a gente criou a emenda de Reforma Urbana, tinha uma Frente Nacional do Saneamento.
Achei, depois do movimento de reforma urbana e depois desse pessoal no Ministério das Cidades, que nunca mais iríamos tamponar córrego, a não ser por uma medida absolutamente necessária. E eu estou cansada de ver o dinheiro do Ministério das Cidades fazendo impermeabilização do solo até dizer chega. Depois vão se queixar de enchente. Porque tapar córrego transfere a enchente de um lugar para o outro. Pensei que a gente tinha feito a diferença, mesmo que só em dois anos e meio, com o Olívio e aquela equipe. Ficou gente boa lá, mas acho que perdemos a luta, que é pela hegemonia do tema, do assunto. Quando eu digo “o Brasil mudou de agenda”, o André Singer tem razão, é porque mudou mesmo, porque não dá mais para um governo entrar sem manter Bolsa-Família, por exemplo. Mas as cidades estão sendo administradas com a política velha. Velha! Parece que nem nós passamos pelo governo.
Tudo bem, temos, pela primeira vez na história, no governo federal, subsídios para a baixa renda, a política do Minha Casa, Minha Vida... Mas acontece que, como não houve reforma fundiária, o dinheiro que chegou foi um dinheiro que alimentou a especulação imobiliária e o preço dos imóveis. Em 2010, naquele ano, depois do lançamento do Minha Casa, Minha Vida, o preço dos imóveis já subiu, disparou. Se você não tiver alguma política que freie os ganhos imobiliários, e há vários instrumentos para isso, no Plano Diretor, Imposto Progressivo, ZEIS (Zona Especial de Interesse Social), preempção, que estabelece que qualquer terra que vai ser vendida, desde que esteja sob direito de preempção, tem que ser oferecida primeiro para o poder público. Se ele não quiser, a pessoa tem que vender pelo mesmo preço para o privado. Isso faz uma diferença. Essas questões não foram aplicadas e o que a gente está vendo, mais do que nunca – talvez, só menos que no auge do BNH –, é uma especulação bárbara.

Fórum – Ou seja, existia uma ideia de se fazer esse investimento em moradias de baixa renda, destinadas a esse público, mas isso está sendo desvirtuado e acaba não suprindo o déficit habitacional do país.
Maricato – Porque 90% do déficit habitacional está situado na faixa de baixa renda, entre 0 e 3 salários mínimos. E aqui cabe explicar uma outra coisa de que nós tínhamos clareza absoluta: o mercado imobiliário brasileiro, até o Lula assumir – porque quando nós estávamos no Ministério das Cidades nós começamos a mudar esse quadro, mas ele mudou mesmo foi com o Minha Casa, Minha Vida – só produzia para acima de 10 salários mínimos. É um mercado que um autor, o Milton Vargas, chama de “artesanato de luxo”. É uma indústria que não era muito produtiva, esmagava a força de trabalho e aplicava muito no conspícuo, no consumo conspícuo.
O que é o consumo conspícuo? A pessoa projeta e coloca ali um Espaço Gourmet, o Child Care, o Fitness Center, pode ser tudo o simulacro, é o condomínio com clube, as torres com o clube dentro, e aí tudo muito bordado, fachada, tarará... Uma parte expressiva da classe média não entrava no mercado. Enquanto isso, você vê que funcionário da USP mora na favela ao voltar do campus da universidade, você vê que o policial militar mora em favela, percebe que tem pessoas que são funcionários públicos, têm segurança no emprego e não são clientes para o mercado imobiliário formal capitalista. É esse o capitalismo brasileiro.
Tínhamos uma proposta no Ministério das Cidades, que foi construída no Instituto Cidadania, na qual afirmávamos que se fossem feitas casas, moradias sociais para baixa renda, e a classe média ficasse sem alternativa, seria o mesmo que enxugar gelo. Isso nós já tínhamos experiência nas prefeituras. Então o que a gente precisava? De uma política para a classe média e uma política para a baixa renda. A política para a classe média era, do nosso ponto de vista, uma política de mercado. E a política para baixa renda, uma política pública. E o Minha Casa, Minha Vida aparentemente fazia isso, porque ele dá subsídio só para quem tem renda abaixo de 5 salários mínimos. Mas, mesmo quando é subsidiado quem constrói vai no teto daquilo que o subsídio permite.

Fórum – Se vai de 0 a 5 salários, as construtoras voltam os esforços pra faixa maior. No fim das contas, também vira uma política voltada para o mercado.
Maricato – É. E por que é que a gente fala voltada para o mercado? Quando o Minha Casa, Minha Vida veio, as maiores empresas do Brasil tinham terra. E elas ganharam muito com renda da terra. Todas as grandes têm um braço popular hoje, mesmo as de luxo têm. Então, essas grandes têm um estoque, e outras já estão precisando comprar terra. As médias, todas, e pequenas estão precisando comprar terra. E o movimento social ficou sem área até para ocupar. Por exemplo, os movimentos sociais urbanos que constroem casas, muitos deles da época da gestão Erundina, se tornaram especializados em mutirões habitacionais etc, e começaram a disputar terra com o próprio mercado na periferia.

Fórum – Agora, ao mesmo tempo, em São Paulo, existem essas operações urbanas e a elevação de preços dos imóveis da região central, afastando ainda mais os pobres para as periferias. Qual deve ser o papel dos movimentos sociais, é ocupar os imóveis vazios? Como podem se articular diante de um panorama diferente daquele de vinte, trinta anos atrás? 
Maricato – Olha, eu posso ser processada se disser que os movimentos devem ocupar. Mas só queria dizer que, se os movimentos não ocupam, essa questão não tem visibilidade. Não, se não ocupam áreas valorizadas. Ocupar, pode, você vai ocupar área de proteção de mananciais? A lei não permite, mas pode. Quero dizer que ninguém vai tirar você de lá a não ser que seja uma coisa pontual. Mas vai ocupar um prédio na Prestes Maia que deve R$ 4 milhões de IPTU pra ver se consegue ficar... Ali, onde a lei permite, não se pode ficar; nas áreas de mananciais, onde a lei não permite, pode. Qual é a norma, a lei que existe neste país? É a de mercado, não é a norma jurídica. Lá, no centro, você não pode porque tem tudo lá, é um tesouro. É o melhor lugar, não tem nenhum local em que o transporte público é melhor, você não precisa ter carro.

Fórum – E em relação a essas novas centralidades em São Paulo, como a região da Berrini.
Maricato – Os americanos construíram a tese da máquina do crescimento, uma articulação de forças que vai conduzir o crescimento da cidade em um sentido. E nos EUA até as lideranças sindicais podem entrar na máquina do crescimento, quando uma cidade compete com as outras, por exemplo, para atrair investimentos, se faz uma coalizão em que todos apostam num determinado sentido do crescimento. Para a Berrini, o que a pesquisadora Mariana Fix e o João Whithaker mostraram é que houve um conjunto de forças que levou o mercado para essa região. O Lamparelli fala que a centralidade da cidade está ligada ao uso da elite e do mercado imobiliário. O centro perdeu centralidade, o Mappin já foi lugar em que as senhoras tomavam chá à tarde, iam ouvir violinos na confeitaria... O capital imobiliário foi para a Paulista e o centro degradou-se; depois foi para a Faria Lima, e a Paulista degradou-se; agora vai para a Berrini, e a Faria Lima começa a degradar. Tudo que é popular é degradado.
O motor é econômico. A fronteira da expansão imobiliária precisa se deslocar e você vê isso em qualquer cidade se expandindo. Em vez de aplicar onde é necessário, por prioridade social, vamos aplicar para produzir a nova centralidade e é lá que o capital imobiliário está.

Fórum – Esse capital imobiliário praticamente norteia as políticas públicas e temos marcos legais para que isso não ocorra. O que falta nessa equação?
Maricato – É a correlação de forças. O governo estadual usou uma força no Pinheirinho que, se não tivesse a repercussão que teve, inclusive em nível internacional, iria se repetir no Brasil inteiro, porque tem muita gente de olho em terras onde estão favelas. Não qualquer terra, mas terras valorizadas. Como o mercado imobiliário está “bombando”, creio que isso foi um ensaio.

Fórum – Existe uma questão em que a senhora toca, mas que não é muito abordada, que é o enfraquecimento dos cinturões verdes, que existiam em torno das cidades, e a relação disto com a força do agronegócio. Como ele muda a lógica do panorama nas cidades?
Maricato – Ele acaba dificultando ou inviabilizando a vida do pequeno. Por exemplo, o pequeno produzia arroz e hoje não tem mais máquina de beneficiamento perto de São Paulo, ficando nas mãos do grande e do médio. A Caixa Econômica Federal está fazendo um esforço para não levar os conjuntos habitacionais voltados para a população de baixa renda para o campo, fora da cidade. Mas as câmaras municipais estão pegando áreas rurais e declarando como área de expansão urbana. Daí você obriga o pequeno produtor a pagar IPTU, ou seja, quebra o pequeno produtor que planta próximo às cidades. O cinturão verde existe em São Paulo e é muito importante e seria importante também ter dentro das cidades essas áreas permeáveis à água de chuva para evitar as enchentes. Agora, quando ela sobe muito de valor, é muito difícil de segurar, principalmente para um pequeno proprietário.
O governo Lula teve duas iniciativas importantes ao garantir que um terço da merenda escolar venha da agricultura familiar e ao assegurar a compra da produção. Isso ajuda a permanência do pequeno produtor. Mas, para competir com o agronegócio, você precisa diminuir o custo do transporte do alimento, o que os europeus e americanos estão fazendo. Hoje, o alimento orgânico é caro, mas prefeituras como Suzano, Guarulhos, Mauá, estão produzindo orgânicos dentro da cidade, com alta produtividade. Isso seria o encontro do campo com a cidade que estamos precisando, a junção da cidade, do campo e do meio ambiente. E aí você pode ter cidade verticalizada, compacta? Pode. Mas com o transporte adequado e áreas permeáveis fazendo parte do tecido urbano. Na cidade compacta, você tem alta qualidade de infraestrutura e está furando essa cidade dispersa. Toda metrópole brasileira está cercada do loteamento fechado, que é uma figura ilegal. Pela lei, não poderia estar fechado. Mas ali moram juízes, promotores, donos de jornal...

Fórum – No caso de São Paulo, em particular, a crise é maior do que em outras cidades? Saiu uma pesquisa da Rede Nossa São Paulo que diz que 56% das pessoas gostariam de sair da cidade. 
Maricato – Olha, fico impressionada com o nível de patologia urbana que a gente aguenta. Sabe aquela história de que, se você esquentar a água devagar até ferver, a rã, o sapo, não pula? Você já ouviu falar? Conheço uma filha de uma amiga minha que falou assim “se você morar numa cidade com uma relativa qualidade de vida e vier para São Paulo, você não fica”. Inclusive o professor Paulo Saldiva, da USP, está mostrando o impacto das doenças respiratórias com a alta concentração de poluentes no ar.
Depois, você tem as horas paradas. Como é que as pessoas aguentam? Uma hora e meia para chegar num lugar, uma hora e meia para voltar e as pessoas acham normal isso. Elas estão doentes. Não é possível aceitar isso. E o que é mais grave de tudo, ninguém mais defende o transporte coletivo. Ninguém mais, digo, coletivamente, em termos de classe, porque hoje os trabalhadores, de um modo geral, querem ou moto ou carro, podem ser velhos. Porque eles aprenderam que transporte público ou coletivo é maldição. Vai ver onde mais se gasta dinheiro? É em obra viária. O que é que você tem mandando na cidade? Bom, em primeiro lugar ninguém questiona, o automóvel. Ele está entupindo todas, todas as cidades. É suicídio. Não há o que fazer, alargar ruas, construir pontes, não adianta. É suicídio, o que está acontecendo. E o transporte coletivo foi derrubado nas décadas do neoliberalismo. Parou a política urbana, parou a política de habitação, de transporte e de saneamento. Bom, foi retomada agora a de habitação e saneamento, mas, sem política urbana, que seria o uso do solo mais essa infraestrutura principal.
Não tem o controle de uso e ocupação do solo, o automóvel não é questionado, o mercado imobiliário controla a legislação fundiária e imobiliária através da Câmara Municipal, e as grandes empreiteiras às vezes substituem a Secretaria de Planejamento e de Obras. Às vezes substituem literalmente a de Obras. Por quê? Porque o poder público não tem quadros, existe uma burocracia infernal e ao mesmo tempo uma condição de ilegalidade para quem fica de fora do mercado e das poucas obras públicas de habitação.
Henri Acselrad sobre a questão ambiental.


sexta-feira, 4 de maio de 2012

Obrigada, Freixo, por tornar público a podridão do atual governo e suas "relações" com financiadores de campanha.
Precisamos de Política e não dessa politicagem ultrapassada e corrupta.



Excelente análise das recentes políticas de imigração no Brasil.

Políticas de imigração no Brasil: por uma postura coerente e cosmopolita

Blogueira Convidada: Patrícia Rangel Doutora em Ciência Política pela Universidade de Brasília (UnB), mestre pelo antigo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ) e bacharel em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).
Autora do livro “Barrados: um ensaio sobre os brasileiros inadmitidos na Europa e o conto da aldeia global”, disponível para download gratuito.
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Há quatro anos, eu e um companheiro de mestrado fomos arbitrariamente detidos em Barajas (aeroporto de Madri) e impedidos de seguir viagem para Lisboa, onde participaríamos de um congresso da Associação Portuguesa de Ciência Política. Foram 50 horas de detenção injustificada e maus-tratos.
Não se tratou de um caso isolado. Só no primeiro trimestre daquele ano de 2008, a polícia espanhola barrou 18 mil pessoas (entre elas, mil brasileiros). Além de se engajar no processo de aprovação da Diretiva de Retorno (um novo acordo para dificultar a permanência de estrangeiros na União Européia), o país anunciou a idéia de pagar para os imigrantes desempregados retornarem a seus países. De lá para cá, pouca coisa mudou. Muitos outros brasileiros foram submetidos a inexplicáveis maus-tratos, como as religiosas que seguiam para a Alemanha em missão evangelizadora; o músico Guinga, que perdeu dois dentes após ser agredido por um policial do posto da Polícia Nacional Espanhola no aeroporto Barajas; o padre Jeferson Flávio Mengali, que, além de ficar detido, suportou chacotas dos policiais sobre suas roupas religiosas; a física Patrícia Camargo Guimarães, que me antecedeu nesta infeliz aventura e também denunciou o abuso das autoridades que a mantiveram presa por três dias sem qualquer justificativa; entre inúmeros outros brasileiros injustiçados.
Apesar de o Ministério do Interior espanhol argumentar que aplica objetivamente as normas do espaço Schengen, relatos de pessoas rejeitadas e repatriadas apontam discriminação na aplicação de regras. As denúncias giram em torno dos mesmos temas: arbitrariedade nos critérios de ingresso, agressividade dos agentes policiais, acomodações precárias, falta de comida e tratamento humilhante. Em poucas palavra, total ausência de direitos. Zero em hospitalidade.
Recentemente, o debate foi resgatado por conta da adoção de políticas de reciprocidade, que acarretaram a negação de cidadãos espanhóis por autoridades brasileiras. O governo da presidenta Dilma Rousseff oficialmente tomou a decisão de endurecer a entrada de turistas espanhóis e oferecer a eles um tratamento nos mesmo moldes do que nos é oferecido por aquele país. Se antes não lhes era exigido praticamente nada, agora os supostos turistas deverão comprovar a posse de pelo menos 75 euros por dia de permanência em território brasileiro e reserva de hotel ou carta de convite de um residente da cidade de destino registrada em cartório.
Com a aplicação objetiva destas novas regras, estão sendo rejeitados os indivíduos que não atendam aos requisitos para entrar em nosso país, ao contrário do que costuma acontecer na outra mão desta estrada. Tudo muito bom, tudo muito bem. Louvável a postura do Itamaraty. Ao menos quando somos nós, brasileiros, as vítimas do comportamento arbitrário das autoridades de imigração e da xenofobia em países centrais. Mas e quando as posições do jogo se invertem?

No começo deste ano, o governo agiu para controlar o fluxo de imigrantes do Haiti que têm entrado no Brasil pela Amazônia, ao estabelecer um limite de cem vistos de trabalho a haitianos por mês. Paradoxalmente, o país tem atraído cada vez mais imigrantes europeus e americanos que fogem da crise econômica. Sem muito interesse em refugiados de países da Ásia Meridional e da África, bem como em imigrantes de outros países latino-americanos, o Ministério do Trabalho esboça planos para facilitar a vinda de europeus. Voltando aos haitianos, dados do governo mostram que, até agora, entraram no país 4 mil cidadãos desta nacionalidade, número que vem sendo apontado como um intenso fluxo migratório. Chega a ser cômico argumentar que os haitianos estão “invadindo” o território brasileiro quando nem sequem se destaca o fato de que a maioria dos 51.353 estrangeiros que entraram no Brasil em 2011 são portugueses.
Não se trata, entretanto, de argumentar que não devemos permitir a entrada de europeus no país. Pelo contrário! Sou partidária da adoção de uma postura cosmopolita e hospitaleira por parte do governo brasileiro, mas que seja para todos os cidadãos do mundo. Não podemos adotar uma lógica de dois pesos e duas medidas, dificultando a entrada de nacionais de certos países e incentivando a vinda de europeus. Fazendo assim, somente estaremos reproduzindo a política de imigração racista da Espanha, tão criticada por nós, brasileiros.
Neste caminho, estaríamos reproduzindo também a recorrente migração seletiva que iniciamos logo após a abolição da escravatura com o objetivo de “embranquecer” nossa população, política evidentemente racista. Este ponto se torna especialmente problemático se observarmos a nada recente existência de grupos de características fascistas que se manifestam contra a presença de migrantes econômicos, sobretudo bolivianos, principalmente na cidade de São Paulo.
Em vez de aceitarmos nossa “natureza” e nosso destino enquanto cidadãos do mundo (como argumentava Kant), preocupamo-nos em controlar os movimentos de pessoas como prerrogativa do poder do Estado, levantando barreiras à entrada dos que desejamos manter longe e colocando nessas barreiras guardas bem treinados, armados e disciplinados para desempenhar bem seu papel. Eis um grande erro, como argumenta Seyla Benhabib, pois o sistema internacional de Estados e povos é caracterizado pela interdependência. Esse movimento deveria nos levar a transcender a perspectiva de territorialidade, não a fechar fronteiras, favorecendo disposições de um regime de soberania vestifaliano.
O que me preocupa, ademais, é a lógica “gente versus mercadoria”. A ideologia do capitalismo globalizado e dos mercados livres, adotada pela maioria dos Estados, fracassou em estabelecer a livre movimentação de pessoas e da força de trabalho, ao contrário do que aconteceu com as mercadorias. Seria coincidência o fato de a política de reciprocidade e endurecimento das regras de imigração somente agora que o Brasil é reconhecido como sexta maior economia mundial e que a Espanha se encontra em um quadro de depressão econômica?
O governo brasileiro não pode ser incoerente. Não pode defender uma postura humanitária nas questões de emigração e outra conservadora quando trata de fluxos imigratórios. Como cientista social e vítima da xenofobia européia, orgulho-me muito das progressistas manifestações brasileiras acerca da questão. Não gostaria e não suportaria ver meu país adotar em relação aos bolivianos, haitianos e paraguaios a mesma postura que Espanha e Itália adotam perante nós, latino-americanos.
Foi observando e analisando este fenômeno que terminei por escrever um livro acerca dos fluxos migratórios, com foco especial nas políticas de imigração da União Européia. O livro, intitulado “Barrados: um ensaio sobre os brasileiros inadmitidos na Europa e o conto da aldeia global”, também traz um par de depoimentos meus sobre tão peculiar etnografia. O nome que escolhi para a obra demonstra meu descontentamento em relação às assimétricas relações travadas entre o Norte global e os povos do Sul.
Acredito que políticas destinadas ao controle da imigração ilegal e das fronteiras, não são efetivas. Além disso, alimentam a crescente xenofobia nos Estados, legitimando a culpa atribuída aos estrangeiros por todos os males sociais que emergem nesses territórios. Por fim, jogam uma pá de cal no projeto de cidadania cosmopolita idealizado por Kant há 200 anos e que, em determinados momentos da história, começou a ser colocado em prática. Barajas se tornou, para mim e para muitos outros, sinônimo de prisão. Espero que em breve, para todos e todas, Barajas volte a ser o nome de um aeroporto, porta de entrada para um mundo de experiências e oportunidades.

Originalmente publicada em http://todososfogos.blogspot.com.br/2012/05/politicas-de-imigracao-no-brasil-por.html