sábado, 12 de novembro de 2011

Parque Olímpico: especulação oficial e por contrato em benefício de quem?

Artigo publicado no blog sobre o urbano Cidades Possíveis

“O Parque Olímpico, que concentrará muitas das atividades do Jogos de 2016, será construído através de uma parceria público-privada (PPP), que teve seus termos divulgados no início de outubro. Em troca do investimento privado de 1,3 bilhão, que segundo a Prefeitura desonera os cofres públicos, será cedido um terreno de 1.180.000 m² (um milhão, cento e oitenta mil metros quadrados), ou 75% do Parque Olímpico, para a iniciativa privada construir condomínios e hotéis depois das Olimpíadas.

Mais do que realizar um negócio questionável, já que a a Prefeitura do Rio tem recursos para viabilizar a obra e poderia vender os lotes valorizados às construtoras após 2016, foi anunciada também a remoção da comunidade Vila Autódromo. O argumento seria o uso da área para o Parque Olímpico, mas esqueceram de avisar aos ingleses do escritório de arquitetura AECOM. Eles venceram o concurso internacional promovido pelo Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) com um projeto que mantém a comunidade onde ela está.
Então, se a Vila Autódromo está no projeto e o seu terreno não tem utilidade para as Olimpíadas, por que a prefeitura insiste na remoção e não na urbanização? A resposta está na minuta do contrato da PPP, na cláusula quinta do anexo 1. O texto define a área do Parque Olímpico e, contrariando o projeto vencedor, inclui o terreno da Vila Autódromo no espaço cedido à iniciativa privada. Compare as áreas privadas do legado de 2030 da Prefeitura do Rio e do projeto da AECOM.



A Vila Autódromo, no canto superior esquerdo, foi anexada ao já imenso terreno cedido às construtoras. Se não bastasse, o item 5.2.3 ainda diz que fica a cargo do poder público “qualquer ônus, despesas ou indenizações de qualquer forma decorrentes ou relacionadas, direta ou indiretamente, ao Imóvel”. Ou seja, a prefeitura além de entregar o terreno deverá arcar com o custo das desapropriações. O dinheiro público usado para limpar a área para os agentes privados.

Para deixar claro o que já estava subentendido, no item 5.3 a prefeitura se compromete a entregar o espaço “desimpedido e desembaraçado de qualquer obstáculo físico”, e vai direto ao ponto: “(iii) Desocupação da totalidade da área atualmente ocupada pela comunidade denominada “Vila Autódromo”, mediante a regularização da situação imobiliária perante o 9º Registro Geral de Imóveis (incluindo todas e quaisquer parcelas que tenham sido acrescidas ao Imóvel em decorrência de aterros, aluviões, avulsões etc.)”;



Assim que uma simples faixa estendida na Cinelândia pelo #OcupaRio, que para quem passa pode parecer palavras de ordem de jovens idealistas, traduz o grande negócio que está sendo feito no Parque Olímpico. A especulação que afeta brutalmente a população de baixa renda, e que também atinge a classe média, não é apenas efeito do encontro entre o capital internacional e o Rio de Janeiro. Trata-se de um projeto de cidade que tem o poder público como aliado irrefutável.

Sob um discurso de gestão eficiente os empresários viram secretários, os políticos grandes amigos de empreteiros e as velhas práticas de apropriação da riqueza produzida pela cidade se legitimam. Os interesses privados continuam dirigindo o Estado, como se vê nos termos dessa “parceria”, e as oportunidades que os mega eventos trazem para toda a cidade infelizmente estão sendo revertidas em bons negócios para apenas alguns. Oficialmente.”

domingo, 6 de novembro de 2011

Nossas cidades estão ficando inviáveis

Ermínia Maricato exibe espanto e indignação com os rumos de nossas políticas urbanas, seu objeto de estudo e área de atuação há quatro décadas. “Para mim, o centro de tudo é a questão da justiça social”, diz ela. Ou seja, de como as metrópoles brasileiras precisam deixar de ser expressão da secular discriminação contra os mais pobres.
Ermínia Maricato, uma das mais importantes urbanistas brasileiras, concedeu a seguinte entrevista à Desafios do Desenvolvimento, em sua casa em São Paulo.

http://www.ipea.gov.br/desafios/index.php?option=com_content&view=article&id=2508&catid=30&Itemid=41


Desenvolvimento - A senhora tem dito em diversas oportunidades que as cidades brasileiras tornaram-se inviáveis. Por quê?

Ermínia - Porque uma parte da população não cabe mais na cidade. E não é uma parte pequena. Tem a ver com uma trombada entre a população pobre e as áreas ambientalmente frágeis. Eu tinha a esperança de que o Ministério das Cidades inauguraria uma nova fase da cultura sobre o desenvolvimento urbano no Brasil, lançando uma idéia um pouco mais elaborada de planejamento e gestão, rompendo essa caminhada atual rumo ao abismo. Eu sabia que não seria uma tarefa fácil.

Desenvolvimento - A senhora acredita não haver solução?

Ermínia - Penso que neste momento a política urbana saiu da agenda nacional. Ou construímos um espaço de debate e mobilização na sociedade civil independente do Estado, pois o Estado tem um poder de cooptação muito grande, ou o caos se tornará dominante.

Desenvolvimento - A senhora propõe uma política alternativa, criando ONGs e organizações desse tipo?

Ermínia - Não. Proponho construir uma correlação de forças diferente da atual, a partir da sociedade civil.

Desenvolvimento - Como se desenvolveu o movimento de reforma urbana nas últimas décadas?

Ermínia - Ele foi muito importante e é admirado por muita gente no exterior. Eles se perguntam como o Brasil conseguiu unificar pesquisadores, lideranças profissionais, comunitárias e sindicais para uma proposta de reforma urbana, que vem desde antes de 1964. Havia uma agenda que foi materializada na prática de várias prefeituras nos anos 1980 e 1990, centrada na reversão de prioridades, de se fazer algum tipo de justiça urbana. O Ministério das Cidades deveria ser um ponto de chegada desse movimento. Muitos de seus integrantes se tornaram prefeitos e deputados. Tínhamos uma comissão forte no Congresso Nacional. Conquistamos muitas vitórias institucionais, como dois capítulos na Constituição de 1988 e a elaboração do Estatuto da Cidade, uma lei que o mundo inteiro admirou. O que acontece na passagem de Fernando Henrique e Lula? O Ministério foi criado, eu fui para a equipe de transição. Em seguida foram definidos o Conselho das Cidades e as Conferências Nacionais das Cidades, com uma prática inovadora, que alcançava até a política de saneamento.

Perfil
Professora titular aposentada da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAUUSP), Ermínia foi Secretária Executiva do Ministério das Cidades, entre 2002 e 2005. Lá foi coordenadora técnica da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano. Trazia na bagagem a experiência de ter comandado a Secretaria de Habitação e Desenvolvimento Urbano do município de São Paulo, entre 1989 e 2002, no governo Luíza Erundina. Foi também autora de todas as propostas para a área urbana das candidaturas de Lula a presidência, entre 1989 e 2002. Mais recentemente, exerceu o cargo de conselheira do Habitat, programa das Nações Unidas para assentamentos humanos.
Natural de Santa Ernestina, cidadezinha próxima a Araraquara, ela chegou a estudar Química Industrial no segundo grau e a iniciar a Faculdade de Física, na USP. “Eu tinha uma cabeça boa para matemática”, conta ela, acostumada a lidar com números e indicadores durante toda a vida. “Decidi prestar vestibular na FAU. Entrei em 1967, em plena ebulição estudantil nos tempos da ditadura”. Ali sua atenção se voltou para o planejamento urbano. “Mas hoje ando muito apaixonada pela agronomia, fazendo experiências de plantar frutas raras da mata atlântica, junto com profissionais de diversas origens que tentam recuperar uma gleba na região”. Com uma ponta de indignação, confessa: “Acho que as cidades estão ficando sem perspectivas de solução de seus problemas”.
Desenvolvimento - Quais as dificuldades para se aplicar uma política de planejamento urbano em nosso País?

Ermínia - A falta de planejamento está ligada a uma questão estrutural que é a concentração fundiária. Você tem um mercado imobiliário que, antes do Minha Casa Minha Vida, atendia menos de 20% da população brasileira. A grande maioria – incluindo a classe média – não era atendida, pois um policial, um professor secundário, um bancário não tinham acesso a ele. Há um mercado restrito e de luxo, que não atinge nem a classe média. O problema é próprio do capitalismo periférico. Com o Minha Casa Minha Vida, o mercado está chegando à classe média. Mas o grande déficit está na faixa de zero a três salários mínimos. A maioria da população excluída dos mercados e das políticas públicas, pois desde 1983 não há política nacional de habitação pública.

Desenvolvimento - Por favor, explique melhor.

Ermínia - São mais de vinte anos sem política pública de habitação, saneamento e transporte. Isso passa pelo neoliberalismo e pela década perdida. São políticas ligadas ao território. Não estou falando de distribuição de renda. Distribuição de renda não basta para resolver o problema urbano. Aqui tem de distribuir ativo, que é cidade, é terra urbanizada. A questão da terra é central na política urbana, pois ela é dominada por esse mercado restrito, elitista e especulativo. O povo acaba tendo de se virar.

Desenvolvimento - Como isso se articula com o problema fundiário?

Ermínia - A questão fundiária é muito séria. Se pegarmos o Censo de 2010, veremos que a área de São Paulo onde a ocupação mais aumentou é a de proteção dos mananciais. Temos aqui duas cidades. Uma é a cidade do mercado e a outra é aquela construída pela população pobre. Em 2010, o preço dos terrenos se elevou em 50% e o de imóveis usados em 30%. Depois do anúncio do programa Minha Casa Minha Vida, tivemos um impacto bárbaro sobre os preços da terra e dos imóveis. Por que? Porque houve a entrada de recursos financeiros sem mudança na base fundiária. Isso acarreta um ganho para o preço dos imóveis. A nossa questão central, a questão fundiária urbana e a função social da propriedade se esfumaram. Eu estou estudando a história da propriedade no Brasil. É impressionante. É fraude atrás de fraude.

Desenvolvimento - O programa Minha Casa Minha Vida não é um avanço diante do déficit de moradias existente no Brasil?

Ermínia - Poderia ser, mas não é. O problema é que a base fundiária permanece a mesma. Lei nós temos, plano nós temos, mas não aplicamos a função social da propriedade. O que aconteceu na ditadura, na época do Banco Nacional da Habitação (BNH)? As fontes de financiamento eram o FGTS e o SBPE (Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo), que é basicamente poupança privada e poupança dos trabalhadores. O governo colocou um subsídio para baixa renda, de recurso orçamentário federal. Mas se ninguém nos três níveis de governo – federal, estadual e municipal - mexeu na base fundiária. Aí houve uma maior desorganização no mercado de terras, com um impacto bárbaro sobre os preços.

Desenvolvimento - O que é mexer na base fundiária?



O automóvel reina soberano
e as empreiteiras propõem
aos prefeitos obras possíveis
de serem concluídas em
quatro anos
Ermínia - Trata-se de fazer uma regulação do uso e da ocupação do solo por parte do Estado. Para fazer isso, o Estado tem de regular também o mercado. Quer um exemplo? Existem quase dois milhões de pessoas na área dos mananciais na zona sul de São Paulo. Se não quisessem essas pessoas lá, teria de haver fiscalização. Quando se faz isso, para onde essas pessoas vão se não se permite que elas se instalem lá? Há um doutorado da professora Angela Maria Gordilho Souza, da Universidade Federal da Bahia, mostrando que em Salvador 33% das habitações são ilegais. Há um mestrado de Carlos Fernando Andrade, ex-presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil - Rio de Janeiro (IAB-RJ), mostrando que 50% dos domicílios da cidade são ilegais. Uma coisa é a questão jurídica. Outra é a fragilidade da construção. São casas em encostas, fundos de vale e em situação de risco. Uma parte considerável das cidades brasileiras continua a ser produzida dessa forma. Quando a gente vê as tragédias depois das chuvas, aparecem aqueles âncoras dos telejornais a repetir que falta planejamento e prevenção. Ora, o que falta é quebrar essa relação de poder que coloca as terras adequadas na mão de um mercado restrito.

Desenvolvimento - Estamos vivendo uma bolha especulativa nos preços dos imóveis?

Ermínia - Se você olhar para trás, para a década de 1970, houve isso também. Foi uma produção muito grande de moradias, com bastante crédito. E lá também não se mexeu na base fundiária. Nessa época mudou o perfil da cidade com um produto chamado apartamento. Depois tivemos a queda dos anos 1980, com a crise, e na década seguinte, com o neoliberalismo.

Desenvolvimento - Não é um problema recente...

Ermínia - Trata-se de uma questão estrutural: uma parte da cidade é feita ilegalmente, pelas mãos dos moradores. Para que? Para manter o mercado como ele é. Para manter a propriedade imobiliária como ela é e para manter a sociedade patrimonialista. Toda a população de zero a três salários está fora dessa cidade. Não foi só a demanda por moradia que aumentou nos últimos anos. Aumentou a demanda, mas não se mexeu na base fundiária. Mudar essa situação é o centro da proposta de reforma urbana, sistematizada desde 1963 no Congresso Nacional de Arquitetos.

Desenvolvimento - O que reforma urbana tem a ver com reforma agrária?
Foto: Raoni Maddalena
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Ermínia - Tem muito a ver. O problema da terra se manifesta no campo e na cidade. É algo que vem desde 1850, da Lei de Terras. A história da propriedade fundiária no Brasil está ligada às relações de poder. Não existe solução sem reforma fundiária. Com isso tudo, eu chego na reforma política. Se continuarmos tendo o financiamento de campanha como é hoje, com eleição sendo trocada por obra, teremos apenas projetos que caibam em quatro anos. As coisas mais importantes nas cidades não se resolvem nesse período.

Desenvolvimento - Como isso acontece?

Ermínia - O que mais tem no Congresso é emenda parlamentar para asfaltar ruas. Verifiquei, num determinado ano, que metade das emendas eram de asfaltamentos. Imagine um deputado federal se preocupar com isso... Essa demanda não é feita apenas para se conseguir voto, para fazer um agradinho em um bairro, construir uma praça ou asfaltar uma via. Eu pensava assim, até um deputado federal me contar que não era nada disso. A lógica é o financiamento de campanha articulado com obras futuras e não o clientelismo.

Desenvolvimento - Quais foram os maiores progressos na política urbana após a democratização, em 1985?

Ermínia - Nós tivemos um grande avanço, que foi o Estatuto da Cidade, sancionado em 2001, que limita o direito de propriedade individual. Foi aprovada a Lei dos Consórcios Públicos, em 2005, possibilitando uma articulação entre entidades públicas, algo muito importante numa região metropolitana, para se resolver problemas de saneamento, de lixo, de transportes etc. Depois foi aprovada a Lei do Saneamento Básico, em 2007. O saneamento ficou no limbo durante todo o período em que o neoliberalismo dominou a política brasileira. Tivemos um número muito grande de conquistas institucionais. E o que aconteceu com a agenda política depois de Fernando Henrique? Lula introduziu a questão distributiva. Caiu a indigência, o subproletariado ganhou espaço, como bem o Ipea aponta. E a oposição ficou sem espaço. Não tem como voltar atrás. A agenda nacional mudou. A política ambiental entrou na agenda, mas a política urbana não.

Desenvolvimento - E por que a política urbana saiu da agenda?

Ermínia - Essa é uma questão boa para nós refletirmos. Não sei se é porque os interesses são tão fortes... Veja por exemplo: não existe Câmara Municipal desvinculada dos interesses dos proprietários imobiliários em nenhum município do Brasil. Dá para contar nos dedos o número de Executivos municipais que contrariem interesses imobiliários e das empreiteiras.

Desenvolvimento - Que interesses imobiliários são esses nas cidades?

Ermínia - As grandes empreiteiras controlam praticamente os investimentos urbanos dentro da lógica do rodoviarismo. O automóvel reina soberano e as empreiteiras propõem aos prefeitos as obras possíveis de serem concluídas em quatro anos. Argumentam que elas irão atrás do financiamento – e isso está ligado ao financiamento de campanha. Aí você tem uma prioridade às obras viárias nos orçamentos municipais no Brasil todo. Mas há algo espantoso. Em dez metrópoles eu tenho um indicador mostrando que 38% das viagens são feitas a pé. Isso significa que muitas pessoas não saem do bairro da periferia. É o chamado exílio da periferia. Em Salvador, segundo o Ubiratan dos Santos, presidente do Sindicato dos Engenheiros, apenas 8% da população anda de automóvel. Vá ver em Salvador o que se gasta em abertura de avenidas, asfaltamento etc. São obras vinculadas ao mercado de imóveis. O [arquiteto e urbanista] Candido Malta chama essas vias de avenidas imobiliárias. Não são rodoviárias. Elas abrem fronteiras da especulação. Há uma lógica que junta o automóvel, a infraestrutura urbana baseada no rodoviarismo e na especulação imobiliária, e o financiamento de campanha. São três forças que intervêm na política urbana e nos levam para o caos completo.

Desenvolvimento - A senhora inclui o automóvel nessa situação?

Ermínia - Claro. Nunca as cidades brasileiras foram assaltadas pelo automóvel como nos últimos anos. A indústria automobilística passou de 13% do Produto Interno Bruto, em 1999, para 19,8% em 2009. Eles são responsáveis por 83% dos acidentes e por 76% da poluição. E muita gente reclama dos ônibus. O professor Paulo Saldiva [da Faculdade de Medicina da USP] lançou um livro recentemente sobre meio ambiente e saúde nas metrópoles. Ele mostra que os dias de pico em poluição são dias de pico de mortes motivadas por doenças coronárias. Não se trata apenas da questão respiratória. Falei de esgoto, das águas e chegamos ao ar. Segundo uma pesquisa da FGV, o trânsito congestionado pode custar 10% do PIB de uma metrópole. São horas paradas não computadas. Durante a crise de 2008-10, de acordo com a Associação Nacional dos Transportes Públicos (ANTP), a indústria automobilística recebeu subsídio de R$ 12,4 bilhões e investiu no País apenas R$ 3,6 bilhões. Para os urbanistas, o automóvel é o maior fator de desorganização do território. Ele induz a ocupação espraiada do solo e destrói a cidade.

Desenvolvimento - Qual a importância do Ministério das Cidades?

Ermínia - Hoje, do ponto de vista clientelista, ele é muito importante. Ele foi entregue ao Partido Popular (PP). O Ministério se tornou uma reunião de obras em áreas como saneamento e habitação, com poucas iniciativas na área de transporte. A agenda do transporte urbano não foi considerada no governo Lula e não está sendo considerada agora. O governo federal é responsável por diretrizes e financiamento de obras e os governos estaduais e municipais são responsáveis pelo uso e ocupação do solo. A questão metropolitana está no limbo completo. Hoje não temos nenhuma região metropolitana com uma esfera administrativa comum, onde os prefeitos, as câmaras, os técnicos, enfim, possam se reunir. Numa metrópole, o problema do saneamento, do lixo, da habitação e do transporte não pode ser resolvido em nível municipal. Nós estávamos traçando uma formulação nacional de desenvolvimento urbano e uma política para as regiões metropolitanas.

Desenvolvimento - A senhora fala muito em ocupação desordenada do solo. Como isso se vincula aos problemas das enchentes?

Ermínia - Assistimos durante décadas os governos fazerem a água andar mais rápido, asfaltando, canalizando e impermeabilizando o solo. Quando as enchentes acontecem, o que você tem de fazer? Reter as águas. E aí, qual o modelito das empreiteiras? Antes era canalizar. Aquelas avenidas de fundo de vale, realizadas pelo ex-prefeito Prestes Maia, em São Paulo, representam uma impermeabilização exatamente das calhas de escoamento existentes. O [geólogo] Delmar Mattes diz num texto que se impermeabilizou o rio Tietê, para que ele corresse mais rápido. Em seguida, ocuparam as margens com asfalto, construindo avenidas marginais. Agora, a moda é o piscinão.

Desenvolvimento - Mas as prefeituras asfaltam bairros que estavam sem calçamento. Quando chovia, as pessoas ficavam literalmente na lama. É uma reivindicação também da população, não acha?

Ermínia - Sim. Mas isso não precisa ser feito como é atualmente. Você pode ter ao lado do rio a céu aberto, uma área impermeável para as pessoas caminharem. Precisamos ter áreas permeáveis, verdes.

Desenvolvimento - No caso das avenidas, não é importante ampliá-las para melhorar o tráfego nas grandes cidades?

Ermínia - A duplicação da Marginal Tietê, em São Paulo, foi feita agora. Isso não aumenta a velocidade do tráfego. Com 600 mil automóveis colocados anualmente nas ruas do país, não há solução se a lógica do transporte individual for mantida. É preciso priorizar o transporte coletivo e dificultar o acesso ao carro.

Desenvolvimento - Mas como fazer as pessoas não quererem o automóvel? Ele acaba sendo um dos sinais da melhoria de renda da população.

Ermínia - Sim, há um problema político a ser resolvido. Mas se pensarmos que não se pode contrariar essa cultura do automóvel, se um político achar que se fizer isso não se reelege, então não há o que se fazer. A lógica é essa mesma. Se os governantes quiserem apostar na indústria automobilística, não tem jeito. E a indústria automobilística está afundando as cidades. É uma escolha política. A única forma de contrariar isso é termos uma sociedade civil mais informada. Quantas pessoas não falam “eu pegaria o transporte coletivo se fosse melhor”?

Desenvolvimento - Como a senhora vê as mudanças na área rural?

Ermínia - Não sei se o maior problema para as cidades não está no fato de o Brasil ser o maior consumidor de agrotóxicos do mundo. As cidades produzem esgotos de 66 milhões de pessoas, jogando nos rios. Elas distribuem pelo território brasileiro. E o território rural distribui para as cidades. Segundo o João Pedro Stédile, nós temos setecentos pilotos formados para pulverizar veneno nas plantações. O cálculo que ele faz destina cerca de cinco quilos anuais de agrotóxico por pessoa. Estamos poluindo as águas, sujando os ares e envenenando as cidades. Há uma novidade que um grupo de Campinas está divulgando. A maior parte da água potável que consumimos apresenta conteúdo de fármacos depressivos e hormônios que a purificação não resolve. Quando digo que a situação é de tragédia, não estou exagerando... A questão ambiental aparece em tudo o que falamos. A questão da permeabilização, do automóvel, da pulverização. Tudo o que conversamos nos leva a um muro que é a questão ambiental.


Se pensarmos que não se
pode contrariar essa cultura
do automóvel, se um político
achar que se fizer isso não
se reelege, então não há
o que se fazer

Desenvolvimento - Que cidade brasileira tem um bom planejamento?

Ermínia - Eu acompanhei o desenvolvimento de muitas e ainda tenho um certo respeito por Diadema. Por que? Diadema teria o destino da Baixada Fluminense. Seria uma cloaca. Ela chegou a ter indicadores de violência altíssimos e reverteu essa situação. Na última vez que estive lá, ouvi do prefeito a seguinte frase: “Nós não queremos a mudança do perfil da população”. Acho que é o único prefeito do Brasil que não quer substituir pobre por rico. Um prefeito não pode combater o automóvel, não está nas mãos dele. Mas ele pode incentivar o transporte público. Mesmo para o processo de expansão imobiliária, um prefeito tem restrições. Há uma ameaça constante por parte dos empresários da construção civil, que alegam que tal ou qual prefeito liberou o gabarito para a construção de todo tipo de obras. “Então nós vamos para lá”, dizem. E chantageiam os prefeitos.

Sem uma política fundiária e imobiliária não haverá justiça urbana

“Terra urbana é terra urbanizada, isto é, trata-se de um pedaço de superfície ou mesmo de um imóvel servido de água, esgoto, rede de drenagem, pavimentação, iluminação pública, serviços como coleta de lixo e manutenção da infra-estrutura citada, sinalização, equipamentos coletivos públicos e privados nas proximidades. Enfim, estamos falando de um pedaço de cidade ou uma parte do ambinete construído como preferem alguns estudiosos. A localização desse pedaço de cidade é fundamental para qualificá-lo e fixar seu preço em comparação com os demais. A condição jurídica de ser propriedade privada permite ao seu possuidor captar a valorização decorrente, principalmente das vantagens de localização. A cidade é um ativo disputado por todos, mas que beneficia poucos. O patrimonio já construído foi bancado por toda a coletividade especialmente por meio de investimentos públicos e o direito à cidade, melhor dizendo, a justiça social e territorial exige a distribuição desse ativo, mas ele é dominado pelo mercado imobiliário. Essa característica de “ativo” que tem o ambiente urbano construído é que os economistas não enxergam. Não basta distribuir renda para assegurar a justiça urbana. É preciso distribuir melhor a cidade ou o ambiente construído. Sem uma política fundiária e imobiliária que ajude a incluir as classes deprimidas e implementar a função social da propriedade prevista no Estatuto da Cidade não haverá justiça urbana. A terra (com esse conceito) é o nó da questão urbana e rural num país patrimonialista como o nosso. No capitalismo central o direito de propriedade já foi bem limitado para assegurar um padrão urbano mais distributivo, especialmente durante o wefare state. Mas no Brasil o patrimonio é poder social, político e econômico. Como a proximidade dos pobres desvaloriza as propriedades há uma rejeição atávica que alimenta preconceitos. Os pobres, (90% do déficit habitacional está situado entre zero e três salários mínimos) não cabem na cidade periférica que não controla o uso do solo, o mercado imobiliário e a especulação decorrente da valorização fundiária e imobiliária”.
__________________
Ermínia Maricato
Desenvolvimento - Que cidades do terceiro mundo, com condições semelhantes às do Brasil, tem uma situação aceitável no que toca ao planejamento?

Ermínia - Bogotá, na Colombia, é puro marketing. Mas o corredor de ônibus, o Transmilênio, é uma solução boa, mas limitada. É como Curitiba, que tem um planejamento ao mesmo tempo modernizante e excludente. Há aquela miséria em volta. O planejamento ali sempre foi ligado a uma elite ligada ao capital imobiliário. Eu não vi nada no terceiro mundo, nem na Ásia, na África e na América Latina... Nós tivemos um período de ouro, na década de 1980, com a emergência das chamadas prefeituras democrático-populares, com orçamento participativo, em uma época muito importante, de fim de ditadura. Nós desenvolvemos um conhecimento de urbanização de favelas. Aliás, nesse ponto, o PAC tem uma vantagem muito grande sobre o Minha Casa Minha Vida, que é a prioridade para a urbanização de favelas. Isso conseguiu resolver as deficiências de muitos bairros pelo Brasil, pois dá ótimas condições de vida. Se as cidades não crescessem de forma predatória, seria possível combinar a construção de moradias à urbanização de favelas. Ou seja, partir da cidade existente, que precisa ser recuperada, e melhorar a situação de infraestrutura, de saneamento, da água, do esgoto, do transporte, da iluminação e por aí vai. O PAC tem uma grande qualidade na área de habitação.

Desenvolvimento - A senhora é pessimista com o futuro das cidades?

Ermínia - Sou realista. Eu sempre fui extremamente crítica. Depois de trabalhar por quarenta anos, examinando e formulando propostas nas quais eu acreditava, hoje acho que estamos regredindo e que a correlação de forças – que colocou o agronegócio com essa força toda no Congresso e no governo federal – é negativa para quem quer essas mudanças. Há uma exigência de que sejamos otimistas e o que eu falo é pesado. Nós temos propostas que já foram feitas. Podemos repetir: universalização do saneamento, resolução da questão da reforma fundiária, com a aplicação da função social da propriedade, prioridade para o transporte coletivo etc.... Nós passamos vários anos construindo uma agenda de reforma urbana. Se a reforma não acontece, minha função agora, na idade em que estou, com o conhecimento que tenho, é chutar o pau da barraca.

Avaliações externas na educação. Por que boicotei o ENADE?

Hoje é o dia de ENADE.
Me fez lembrar quando eu passei por isso, lá perto dos anos 2000 (não me lembro bem a data). Para piorar a minha situação, eu não recebi a carta de convocação a tempo e não fiz a prova. Expliquei ao INEP o ocorrido, mas a minha solicitação foi INDEFERIDA. Isso significou a retenção do meu diploma de graduação até a realização da próxima prova (que seria realizada em um ano, acho). Não preciso dizer que a minha indignação em relação a essa política educacional (?) aumentou ainda mais.

 Eu fui forçada a fazer uma prova, na qual eu não concordava com os objetivos, métodos e fins,  meu diploma de conclusão de curso estava atrelado a ela e eu não fui convocada a tempo. Quando fui finalmente fazer a prova, entrei, colei o adesivo do boicote e saí. Para a minha surpresa, queriam me impedir de sair da sala. Alegavam que o edital só permitia a saída dos alunos após 1 hora de realização de prova e que eu seria desclassificada. Eu, com toda a minha paciência cívica, expliquei os motivos pelos quais não fiz a prova e pedi, gentilmente, que me deixassem voltar para casa (longe dali umas 2 horas).

Afinal, por que boicotei o ENADE?
O ENADE é uma avaliação das Universidades que substituiu o PROVÃO (do então ministro neoliberal da Educação, Paulo Renato). O ENADE ranqueia as instituições de ensino, resultando em incentivos as universidades que vão bem (e não as que vão mal e possivelmente precisam de algum tipo de mudança), desconsiderando a realidade de cada instituições e as suas questões reais.

Se pensarmos bem, o que essas avaliações fizeram nos últimos anos para melhorar o ensino superior? Por que não construir uma avaliação de verdade, a partir da participação efetiva das universidades, com a exposição real das suas questões? Por que não discutir abertamente as políticas voltadas para o ensino superior, como o REUNI? Fazíamos isso, via movimento estudantil, diariamente.

 Discussão semelhante pode ser feita para as avaliações externas do ensino médio. O SAERJ, prova aplicada pela Secretaria Estadual de Educação, serve não só para diagnosticar a situação do ensino, já amplamente divulgado como precário, mas faz parte também do Plano de Metas, que tem como eixo principal a meritocracia,  usando os resultados para punir ou premiar professores, estabelecendo SALÁRIOS DIFERENTES entre os eles. E desde quando isso é uma política séria de melhoria da educação?

Não sou contra avaliações. Questiono sempre seus objetivos. Desconfio todas as vezes que elas são concebidas e implementadas de formas centralizadas, sem consulta aos que estão nas unidades de ensino. Não vi, nos últimos  anos, apesar de todas as avaliações, muitos paços em direção a melhoras significativas no ensino superior, nem no médio. Pelo contrário, a situação de precarização do trabalho e das condições em geral se deterioram.

Perdemos tempo com tudo isso. Uma avaliação séria deve ser feita para o ensino em geral, em todos os seus níveis,  visando não só a  universalização, mas a qualidade. Para isso, precisamos de mais investimento (10% do PIB para Educação Já) e dar mais autonomia as redes de ensino, para que elas possam mostrar e debater as reais dificuldades que enfrentam. E não o inverso.

Estamos longe disso.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

A Copa e a queda de Orlando Silva


Nota Oficial da Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa
A Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa das 12 cidades-sede, composta por movimentos sociais e populares, entidades, organizações e militantes que defendem uma Copa inclusiva, democrática e sem violações de direitos humanos, vêm a público se manifestar sobre a saída de Orlando Silva do Ministério dos Esportes, bem como reforçar a preocupação com a condução das questões relacionadas aos Mega Eventos no Brasil.
A gestão do ex-ministro Orlando Silva foi incapaz de avançar na efetivação da Política Nacional de Esporte. Ainda foi marcada pelo aparelhamento do Ministério para favorecimento das grandes empresas, pela terceirização da política pública através dos convênios com entidades particulares, pelo desrespeito aos atletas (muitos dos que competiram no PAN ficaram todo o primeiro semestre de 2011 sem receber o apoio financeiro das bolsas governamentais) e pelo descumprimento das decisões e diretrizes das Conferências Nacionais dos Esportes, como a criação do Sistema Nacional do Esporte e Lazer.
Durante o período em que esteve à frente do Ministério dos Esportes, experimentou-se pronunciada omissão do Estado na construção de uma política pública séria e efetiva no campo esportivo, bem como seguido desrespeito à sociedade civil e aos processos de participação democrática, motivo que, sozinho, já justificaria sua retirada.
Porém, seu principal legado é a condução autoritária e nebulosa das negociações e implantação da Copa do Mundo de 2014. Infelizmente, mais próximos de uma vitrine de oportunidades econômicas especulativas do que de um evento esportivo, visando sobretudo o lucro e o favorecimento da FIFA e de seus patrocinadores. Os jogos projetados pela gestão de Orlando Silva, e de todo o governo federal, são responsáveis diretos pelos grandes prejuízos sociais, econômicos e culturais já instaurados ou em fase de consolidação no país.
Acompanhamos diariamente o estado de exceção imposto para a viabilização da Copa no Brasil nos moldes ditados pela FIFA. Vemos populações inteiras sendo despejadas (números ainda provisórios apontam que aproximadamente 150 mil famílias serão atingidas), camelôs sendo proibidos de exercer suas atividades, moradores em situação de rua expulsos, cidades militarizadas, obras superfaturadas, desvio de dinheiro público e a criação de uma base legal que visa ferir a soberania brasileira e os direitos historicamente conquistados.
A Lei Geral da Copa, idealizada também pelo Ministério de Orlando Silva e agora em discussão no Congresso Nacional, merece atenção e desconfiança da população, pois prevê:
a) as patentes para a FIFA de nomes e símbolos relacionados à Copa;
b) a supressão dos direitos à meia-entrada e outros direitos do consumidor conquistados;
c) a proibição de atividade em território público, mas considerado pela FIFA como de interesse dos jogos;
d) a substituição do visto consular pelo ingresso vendido pela FIFA como autorização de entrada no país; e, principalmente,
e) pela submissão do Estado brasileiro como responsável por todos os prejuízos da entidade.
Ademais, a Lei Geral também cria novos tipos penais e juizados especiais que servirão para coibir e criminalizar a população brasileira em seu próprio território, colocando os interesses estrangeiros (da FIFA) acima dos nacionais.
A FIFA é uma empresa privada, assim como seu Comitê Organizador Local, e tanto a empresa quanto seus dirigentes são alvo de inúmeras denúncias e investigações internacionais.
Finalmente, o Ministério dos Esportes e o governo brasileiro já autorizaram maior endividamento dos estados e municípios para a Copa. Também aprovaram orçamentos bilionários, desvirtuando prioridades, e isenção fiscal para todas as atividades relacionadas aos Mega Eventos. Ou seja, a FIFA e as pessoas a ela ligadas não pagarão um único centavo de impostos no Brasil. Ficará a dívida, a conta que já está sendo paga pela falta de investimentos nas políticas de saúde, educação, habitação e trabalho, entre outras.
Orlando Silva caiu depois de uma gestão desastrosa para o Esporte e a sociedade brasileira. Infelizmente, porém, esta mesma política deve continuar com Aldo Rebelo, uma vez que ainda não foi questionada.
Lutaremos sempre para barrar medidas abusivas como a Lei Geral e garantir o direito das populações atingidas pela Copa do Mundo.
O ministro sai acuado por várias denúncias de desvio de verba e favorecimento ilícito. Nos posicionamos pela justiça e respeito aos direitos e garantias fundamentais como princípio norteador. E defendemos também a publicidade e transparência, inclusive para que a população saiba, dentre outras coisas, que o novo Ministro dos Esportes, Aldo Rebelo, teve sua campanha financiada por pelo menos três dos 10 patrocinadores nacionais da CBF, além de empreiteiras beneficiadas com as obras da Copa de 2014.
Por essas razões, defendemos acima de tudo:
a) que as obras para a viabilização da Copa de 2014 sejam realizadas com transparência, participação e controle social, assegurando o direito à moradia e ao trabalho; todas as populações (trabalhadores e moradores) removidos pelas obras da Copa tenham seu direito de defesa respeitado; e possam ter de volta moradia e emprego dignos;
b) que os(as) atletas olímpicos tenham seu direito à bolsa Atleta garantido e que as políticas da Conferência de Esporte sejam cumpridas, bem como que a Política de Esporte Nacional seja desenvolvida de forma responsável e pública, e não através de transferência de recursos a convênios privados sem controle social;
c) que a população brasileira tenha o direito de opinar sobre a perda de soberania com a Lei Geral da Copa, os gastos bilionários do orçamento público para a realização da Copa e a isenção de impostos para a Fifa.
Sem estes direitos assegurados, de nada vale o direito de defesa do ministro, do governo federal e da FIFA, pois seus crimes e violações continuarão em curso.
Assinam esta nota os Comitês Populares da Copa de Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo, Recife, Manaus, Cuiabá, Belo Horizonte, Salvador, Porto Alegre, Fortaleza, Curitiba e Natal.
31 de outubro de 2011

http://comitepopulario.wordpress.com/2011/11/01/a-copa-e-a-queda-de-orlando-silva/

O que está em jogo na Vila Autódromo


A comunidade Vila Autódromo foi originada de uma antiga vila de pescadores e conta atualmente com cerca de 900 famílias. Sua presença na região da Barra da Tijuca significa uma história de resistência de mais de 40 anos. Seu crescimento se deu exatamente pela vizinhança com o quase extinto Autódromo Nelson Piquet, onde várias oficinas especializadas ali se instalaram visando o apoio às categorias que usavam a pista. Só o kart chegou a gerar centenas de empregos na comunidade ao longo dos anos 1970, 1980 e parte dos anos 1990.

Um outro marco do crescimento da comunidade foram as remoções dos anos 1960 e 1970 que expulsaram milhares de famílias da zona sul da cidade, em direção à Baixada de Jacarepaguá que, na época, estava além das fronteiras do crescimento urbano carioca.

Quem passeia pelas ruas da comunidade não se sente numa favela convencional. Sua configuração urbanística, com ruas respeitando um certo alinhamento original, é perfeitamente passível de regularização e transformação num pequeno bairro popular.

Tanto que, ainda nos anos 1990, o governo do Rio de Janeiro emitiu certidões de concessão real de uso para todas as famílias que lá viviam naquele momento. Garantia da posse por 99 anos! A comunidade tem documentos que comprovam a posse mansa e pacífica do terreno há várias décadas.

Entretanto, a prefeitura do Rio, a despeito de todos esses elementos, insiste em sustentar um processo que visa cancelar as certidões emitidas pelo governo do estado e remover integralmente a comunidade. Esse processo, na verdade, é uma guerra suja onde se usa do poder político, dos seus aliados na mídia e no mercado imobiliário para criminalizar os moradores e criar, uma vez mais, um consenso positivo para uma remoção absolutamente injusta e desnecessária.

A cada momento é utilizado um argumento diferente. Ora é um problema ambiental (decorrente da ocupação da margem da Lagoa da Jacarepaguá), ora é um compromisso assumido junto a organismos internacionais ligados aos megaeventos esportivos.

Entretanto, a mesma prefeitura que ataca a comunidade sob o argumento da ocupação da faixa marginal de proteção da lagoa, autoriza, apoia e executa obras ambientalmente degradantes tais como a nova Cidade do Rock e o corredor Transcarioca. Obras que avançaram com aterro para dentro do espelho d’água da lagoa, sem que se publicasse uma vírgula na grande mídia sobre isso.

Tivemos notícias, e comprovamos in loco, que os aterros feitos para abrigar a nova Cidade do Rock, com mais de 2m de altura, avançaram vários metros para dentro da Lagoa de Jacarepaguá, reduzindo sua superfície de contenção de águas pluviais – o que constitui um dos principais serviços ambientais da lagoa para a cidade, evitando grandes alagamentos na região.

Mais além, na área do ex-autódromo Nelson Piquet, as maquetes e concepções gráficas divulgadas através da imprensa já demonstram que não haverá espaço para a manutenção e/ou recuperação de ecossistemas nativos de grande relevância ambiental para a lagoa e para a cidade como um todo. É essa a sustentabilidade que se pretende com os megaeventos?

Durante a candidatura do Rio para sede das Olimpíadas 2016, o comitê organizador distribuiu para autoridades e imprensa uns cadernos que sintetizavam os projetos e propostas do projeto Rio 2016. Um dos cadernos se chama “Legado Urbano e Ambiental” e, num determinado trecho, fala da Zona de Uso Misto que seria implementada na Barra da Tijuca. Eis um trecho publicado na página 98:

“Nova Zona de Uso Misto na Barra”

“A implantação de uma zona de uso misto numa área da Barra da Tijuca hoje subutilizada, vizinha à Vila Olímpica, dentro do atual Autódromo de Jacarepaguá, ficará como legado urbano caso os Jogos sejam realizados no Rio. Os dois prédios a serem construídos para abrigar o Centro Principal de Imprensa (MPC) e o Centro Internacional de Rádio e Televisão (IBC) foram planejados para privilegiar a iluminação e a ventilação naturais, contribuindo para o uso racional de energia e a redução da emissão de poluentes. Eles serão erguidos pela iniciativa privada, com cláusula de ocupação pelos compradores somente após os jogos.

O impacto da construção será múltiplo. O uso misto vai provocar, além da reordenação do entorno degradado, movimentação econômica com atração de atividades comerciais e de serviços diversos. Uma mudança de perspectiva para as comunidades vizinhas, como a Vila Autódromo, onde vivem 350 famílias de baixa renda em condições precárias de infraestrutura e de serviços. O município vai dar tratamento especial à situação de moradia daquela população. Como todo o entorno será urbanizado e ajardinado para os jogos, os moradores também vão receber educação ambiental direcionada à preservação de seu bairro.”

Pela leitura desse trecho, fica claro que a prefeitura do Rio não tem qualquer domínio sobre o que diz. A secretaria municipal de Habitação tem usado e abusado das suas tentativas de cooptar lideranças e criar cisânia entre os moradores. Nas últimas semanas, um batalhão de pseudo-assistentes sociais e agentes da secretaria municipal de Assistência Social e da SMH estiveram na comunidade para cadastrar as famílias, à revelia de sua vontade. Como de praxe, pichações, informações parciais e incorretas foram impostas a quem lhes abria a porta. Ameaças de que “está tudo perdido” se repetiram aos montes.

Vê-se claramente que a prefeitura do Rio não respeita sequer seus próprios decretos, seus próprios discursos e documentos. É assim que nasce o estado de exceção.

Paralelamente, foi publicado que a Prefeitura está comprando um terreno por R$ 20 milhões exatamente para realocar as famílias da Vila Autódromo. Fomos investigar e constatamos: a dona do terreno que está sendo comprado é uma empresa cujas controladoras doaram mais de R$300mil para as campanhas eleitorais do Sr. prefeito e do seu chefe de gabinete, em 2008, além do seus secretários de Habitação, da Assistência Social e da Casa Civil, em 2010. Tem ou não tem siri embaixo desse angu?

Através da imprensa ficamos sabendo que o reassentamento da Vila Autódromo custará, no total, cerca de R$80milhões. Diante desse quadro, perguntamos: e se esses milhões fossem usados para urbanizar e regularizar a comunidade? Acho que ainda sobrariam muitos trocados…

Apoiamos a urbanização da comunidade e o encerramento de toda e qualquer tentativa de remoção de moradores sem a devido consentimento e participação da comunidade. Os ocupantes da faixa marginal de proteção da Lagoa de Jacarepaguá não representam nem 15% do total. É perfeitamente possível reassentá-los na própria área sem maiores custos ou transtornos.

A regularização urbanística e fundiária da Vila Autódromo é o caminho mais barato e socialmente mais responsável para a cidade. Além de destruir um patrimônio do esporte brasileiro, o autódromo Nelson Piquet, a prefeitura do Rio trabalha para a entrega de imóveis e recursos públicos para o lucro de alguns grupos privados em detrimento do bem estar da população trabalhadora.

http://www.eliomar.com.br/2011/11/01/o-que-esta-em-jogo-na-vila-autodromo/

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Marcelo Freixo: “A minha insegurança é o preço da inoperância do governo do Estado”

Carta Capital

Alvo de 27 ameaças de morte –sete delas só no último mês–, o deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL-RJ), 44 anos, saiu do Brasil no início da noite desta terça-feira 1º, desconcertado e às pressas, segundo deixou entrever em conversa com Carta Capital duas horas antes de tomar o avião rumo à Europa (o país de destino está sendo mantido em sigilo por razões de segurança). “O governo do Estado veio com uma nota no dia de ontem dizendo que as ameaças não têm fundamento, mas que não falaram nada por sigilo. Sigilo para mim? Nem eu sabia! Que sigilo é esse?”
A convite da Anistia Internacional e da organização de direitos humanos Front Line, o parlamentar que presidiu a CPI das Milícias há dois anos e é pré-candidato à Prefeitura do Rio, sai por um mês “do circuito” e, no exterior, tem o objetivo de aumentar a pressão internacional sobre o Brasil para que se combata o problema no Estado. “Não vou deixar que façam o mesmo que ocorreu com a Patrícia (Acioli, juíza assassinada em agosto, em Niterói).”

Carta Capital – O sr. sai por não se sentir seguro com as condições de proteção oferecidas?

Marcelo Freixo – O grande debate não é sobre a minha segurança. Eu tenho uma segurança que a maioria da população não tem. O grande debate é o enfrentamento das milícias. Eu estou saindo para fazer uma denúncia porque das 58 propostas concretas que aprovamos no relatório da CPI quase nada saiu do papel. O número de milícias em 2008 era de 170, hoje é de mais de 300. Já torturaram jornalistas, já mataram uma juíza e agora ameaçam a vida de um parlamentar. Tivemos 500 prisões depois da CPI, isso é muito importante, mas só as prisões não resolvem, tem que tirar deles o braço econômico e territorial. Nada é feito e há um cinismo no Rio de Janeiro, em que se finge que o problema das milícias está resolvido. Eu não posso continuar convivendo com essas ameaças como se a milícia fosse um problema só meu. Não é. Esse é um problema do Rio de Janeiro.

CC – Mas que atinge o sr. diretamente…

MF – A minha queixa não é em relação a segurança, é quanto à falta de comunicação da Secretaria de Segurança ou de qualquer pessoa do governo quanto a essas ameaças. Ninguém me procurou para dizer qual apuração foi feita, e aí o governo do Estado vem com uma nota no dia de ontem dizendo que as ameaças não têm fundamento, mas que não falaram nada por sigilo. Sigilo para mim? Nem eu sabia! Que sigilo é esse?

CC – De acordo com a Secretaria de Segurança do Rio, o sr. é o parlamentar mais protegido do Rio de Janeiro…

Freixo – O governo me protege porque tem obrigação de fazer isso, porque estou ameaçado por conta da minha função pública. Não é favor. Estou ameaçado porque eles não fizeram o que deviam fazer, não cumpriram o que o relatório da CPI determinou. A minha insegurança é o preço da inoperância deles. Não é bom viver com segurança, não é privilégio. Eu troco. Quem quiser trocar (de lugar comigo), eu troco. E mais do que isso, não estou discutindo segurança. Estou discutindo por que, em nenhum momento, eles entraram em contato comigo para falar que investigação estava sendo feita. Sabe por quê? Porque não fizeram investigações. Duvido. Assim como não fizeram investigações sobre (as denúncias do) disque-denúncia da Patrícia (Acioli). Porque se tivessem feito, ela estava viva. Desconsideraram o disque-denúncia da Patrícia, o que não vou deixar que façam… A milícia usou as armas do Estado, da polícia, para matar a Patrícia. Deram um recado: estão calando o Estado. É isso que eles querem. A minha saída do Brasil é uma forma de protesto. Estou saindo porque recebi sete ameaças em um mês, porque não recebi um comunicado do Estado e porque a situação das milícias se agrava a cada dia no Rio de Janeiro, e a minha ida para lá gerou um debate. Se alguém acha que a minha segurança é muito grande, devia comparar com a segurança do sr. Luiz Zveiter, presidente do TRE (RJ). Não existem essas ameaças sobre ele, mas a segurança dele é cinco vezes maior que a minha. Estou denunciando uma situação grave, de uma milícia estabelecida no Rio de Janeiro e em outros lugares do Brasil, as providências não são tomadas, o Estado sabe o que fazer, e essa pressão na esfera internacional tem que acontecer para que a pressão sobre o Estado brasileiro aconteça.

CC – O que vai fazer na Europa?

Freixo – Como tudo foi feito em cima da hora –o convite foi feito de quinta para sexta–, é uma situação muito mais emergencial que planejada, vou cumprir a agenda que a Anistia conseguir lá. Vou levar alguns relatórios da CPI e vamos conversar para que a pressão sobre o governo brasileiro no sentido de cumprir o relatório possa acontecer, porque é necessário. O objetivo da Anistia é me tirar um pouco do circuito neste momento, até que se possa restabelecer minha segurança em função dessa nova conjuntura, porque sete ameaças em um mês é algo muito delicado. Também vou buscar evidentemente um equilíbrio para continuar fazendo esse trabalho e aproveitar isso para trazer para dentro do Brasil a denúncia de que as coisas não estão resolvidas. E lá fora pedir para que a comunidade internacional pressione o país, já que o Brasil vai ser palco de grandes eventos internacionais. Que essa comunidade que em breve vai estar olhando para o Rio de Janeiro, que olhe logo agora e perceba que existe uma máfia muito bem estabelecida aqui ameaçando o poder público.

CC – Para esclarecer: o sr. pediu aumento de sua segurança pessoal ao governo do Estado, e esse reforço não chegou a tempo. É isso? O governo nega.

Freixo – Eu pedi mais um policial em agosto, até agora não chegou. Eu tenho o ofício. O secretário de segurança me parece até que desconhece, mas tenho o ofício desde agosto, e reiteradas vezes, esse ofício tramitou mais de cinco vezes para a secretaria. Realmente existiu esse pedido em agosto e não foi atendido até agora, mas é muito mais por um processo burocrático. Mas minha saída não é em função disso, por causa de um policial a mais ou a menos. Acontece por conta do acirramento das denúncias, da falta de respostas da secretaria para todas as denúncias e do convite da Anistia para poder fazer essa denúncia tanto aqui dentro como lá fora.
http://www.viomundo.com.br/voce-escreve/marcelo-freixo-%E2%80%9Ca-minha-inseguranca-e-o-preco-da-inoperancia-do-governo-do-estado%E2%80%9D.html  acesso em 2 de novembro de 2011