segunda-feira, 2 de maio de 2011

Maravilha para quem?

O artigo Maravilha para quem? publicado pela revista Democracia Viva n° 46, do Ibase, problematiza a questão do direito à moradia diante do projeto Porto Maravilha, da prefeitura do Rio de Janeiro. A exemplo do que ocorreu em outras intervenções urbanas em regiões portuárias – como em Buenos Aires, Barcelona ou Nova York – devem aumentar os processos de especulação financeira e imobiliária na região. Enquanto isso, a população que vive naquela área, inclusive os moradores de ocupações, seguem tendo o direito à moradia negado. O projeto Porto Maravilha faz parte do contexto dos megaeventos – Copa de 2014 e Olimpíadas de 2016 – que prometem a remodelação da cidade. Resta saber quem serão os reais beneficiários destas modificações.
O texto é da assessora da Fase Rossana Tavares, arquiteta e doutoranda em urbanismo pela UFRJ e de Laura Burocco, pesquisadora do Ibase, pós-graduada em sociologia urbana pela UERJ.

Maravilha para quem?

Ocupações na Zona Portuária carioca lutam pelo direito à cidade, em meio à chamada revitalização da região
Os recentes grandes projetos e obras na cidade do Rio de Janeiro, por ocasião dos chamados megaeventos, principalmente a Copa 2014 e as Olimpíadas 2016, parecem despertar um fascínio coletivo, carregar uma aura de incontestabilidade. Já passa da hora de se quebrar essa unanimidade e trazer para o debate um olhar mais preocupado com o lado social dessas intervenções urbanas. Este artigo busca fazer isso ao analisar o Porto Maravilha, símbolo maior das pretensões da Prefeitura do Rio e de investidores para a cidade, e ao apresentar os movimentos cariocas de luta pela moradia e as ocupações localizadas na área portuária. Diversas cidades no mundo realizaram a chamada revitalização de suas zonas portuárias. Buenos Aires, Barcelona, Nova York, Roterdã são exemplos. Bairros, antes abandonados, viram alvo de especulação financeira e imobiliária. Essas intervenções são emblemáticas do que se denomina processos de gentrificação de regiões urbanas, muito comuns nas cidades intituladas globais.
O termo, difundido pela socióloga inglesa Ruth Glass, caracteriza a expulsão da população de baixa renda de bairros centrais e a atração da classe média para essas localidades devido à renovação de moradias e infraestrutura. Modifica-se de forma radical tanto a distribuição urbana quanto as relações socioeconômicas e impede-se a diversidade e a heterogeneidade. O processo de esvaziamento da área portuária no Rio de Janeiro passa pela construção da avenida Presidente Vargas, do elevado da Perimetral, pelo deslocamento de parte do transporte marítimo para o Porto de Itaguaí.
O isolamento teve o seu ápice na crise dos anos 1980. Uma das grandes evidências desse processo é a queda gradativa na utilização dos antigos armazéns da avenida Rodrigues Alves e o uso crescente de contêineres. Esse conjunto de fatores contribuiu para o processo de degradação urbana e redução das funções de origem daquela região, aspectos semelhantes aos encontrados em zonas portuárias de outras cidades do mundo e do Brasil. Num momento em que o país cresce a taxas razoáveis, o interesse da Prefeitura do Rio de Janeiro pelos bairros portuários tem o objetivo de inserir o município na dinâmica contemporânea de competitividade global entre cidades. Os chamados waterfronts são terreno fértil para eventos de mídia ocasionais, construção de marcos urbanos, entre outras empreitadas. Parece claro que os governos federal, estadual e municipal estão comprometidos em tornar o Rio de Janeiro uma cidade global. O Rio pode ainda explorar a imagem tradicional de cidade maravilhosa, balneário tropical, para atrair os investidores. Para que a iniciativa dê certo, o projeto, contudo, necessita eliminar tudo que seria sinal de atraso. Ou seja, toda a herança sociocultural e até econômica da área. No caso carioca, estamos falando de passar por cima de referências históricas de uma localidade onde se misturam descendentes de europeus, de quilombolas e comerciantes que resistem ali ao longo de décadas.
É opinião majoritária entre os moradores e moradoras da região que o projeto de revitalização da zona portuária, tanto o Porto Maravilha quanto o Porto Olímpico, não irão beneficiá-los. A reclamação mais rotineira é por não terem participado da elaboração da iniciativa, nem serem informados sobre ela. A intervenção municipal retoma inclusive a antiga política de remoção de moradia, aplicada nas favelas cariocas no século passado. Outro alvo recente são as ocupações em prédios públicos e privados, antes vazios e abandonados. O fenômeno é recente no Rio de Janeiro e, de certa forma, responde ao antigo problema de ausência de uma política habitacional para a população de baixa renda.
O projeto Porto Maravilha, ao propor o zoneamento da região, estabelece quatro áreas “residenciais”, sendo apenas uma “de interesse social”, a do Morro da Providência. As outras áreas são de casas e prédios passíveis de restauração. Esses imóveis, hoje ocupados por diversas famílias de baixa renda, irão terminar atendendo às classes médias. Nas localidades mais próximas do waterfront estão as áreas comerciais, de serviço, culturais, de turismo e entretenimento, um convite à apropriação da região pelo capital privado.
Uma das medidas mais controversas do Porto Maravilha são os Certificados de Potencial Adicional Construtivo (Cepacs), documentos emitidos pela Prefeitura, que permitirão que o coeficiente de aproveitamento básico (a relação entre a área edificável e a do terreno) de um lote seja extrapolado. Ou seja, os Cepacs abrem a possibilidade para se construir num terreno além dos limites determinados em lei. A exceção será concedida mediante pagamento. Os Cepacs não vinculados a um lote poderão ser negociados no mercado e os recursos captados nessas transações serão revertidos para a área portuária. A dinâmica vai gerar receita significativa para uma zona que, por conta dos projetos, já é alvo para um grande volume de investimentos.
Também haverá incentivos fiscais e a criação da Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio de Janeiro (Cedurp), com o objetivo de implementar concessões, parcerias, gerir ativos patrimoniais e disponibilizar bens e equipamentos para a Prefeitura ou para entes privados. Os papéis entre público e privado se invertem e rompe-se o caráter universalista que deve ter a destinação dos recursos públicos. Cria-se uma espécie de estado de exceção no Centro do Rio de Janeiro, que ganha um status de área para uso exclusivo.
O Porto Maravilha é maravilha para poucos. O projeto praticamente não conta com o envolvimento e a participação da população e lhe falta transparência nas decisões. Ele não tem como diretriz misturar classes sociais e diversificar os usos da região, considerando os já existentes. A iniciativa não prevê nenhuma ação para valorizar a memória, os patrimônios material e imaterial da região ou para garantir a permanência da população atualmente residente no local. Esses são alguns dos pontos negligenciados pelo Porto Maravilha. A tendência é transformar bairros portuários em lugares estéreis. A participação da população é vital para garantir o direito à cidade e um processo de transformação urbana sustentável e sem violação de direitos.
Num contraponto à intervenção da prefeitura, movimentos sociais de luta pela moradia se organizam na região. Nos últimos dez anos, eles têm resolvido por conta própria uma pequena parte do problema do déficit habitacional, ao ocuparem prédios públicos abandonados. Quatro ocupações se destacam: Chiquinha Gonzaga, zumbi dos palmares, quilombo das Guerreiras e Flor do Asfalto.
Ocupação Zumbi dos Palmares
A ocupação Zumbi dos Palmares é a que tem a situação mais complicada, devido à localização nobre, na avenida Venezuela, atrás da praça Mauá, onde será o MAR (Museu de Arte do Rio). De lá, sairá o teleférico para o morro da Conceição, passeio destinado aos turistas de cruzeiros que chegarem ao porto. A localização da Zumbi garante emprego, fácil acesso a comércio e escolas aos moradores e moradoras.
O prédio é do Instituto Nacional de Seguro Social (INSS) e foi abandonado nos anos 1970. Assim ele estava até a sua ocupação em 2005. O prédio se esvaziou recentemente pela ação da prefeitura. O poder público dividiu as famílias e enfraqueceu a mobilização ao oferecer indenização ou reassentamento em um conjunto habitacional em Cosmos, zona oeste da cidade. No entanto, o conjunto, construído pelo programa federal “Minha Casa, Minha Vida”, já apresenta rachaduras em sua construção.
Ocupação Quilombo das Guerreiras
A Quilombo das Guerreiras situa-se na avenida Francisco Bicalho, perto da rodoviária Novo rio. Ela é composta por camelôs, trabalhadores informais, que em 2006 ocuparam o prédio da Companhia Docas do Rio de Janeiro, abandonado então há mais de dez anos. A ocupação passa por um processo de reorganização e mudança para um imóvel a ser construído na Gamboa. A União por Moradia Popular (UMP), a Central dos Movimentos Populares (CMP) e a Fundação Bento Rubião têm contribuído com a articulação e a resistência das famílias. No entanto, a implantação de um binário (pista dupla com separação no meio) em parte da Gamboa tem prejudicado o cronograma das obras do novo imóvel. Há incertezas sobre a possibilidade de se permanecer no prédio atual até o final da construção do novo edifício.
Ocupação Flor do Asfalto
A Flor do Asfalto tem características próprias que a diferenciam das outras ocupações do porto. Ela existe desde 2006 na avenida Rodrigues Alves. A sua concepção aproxima-se mais do modelo dos squatters anglo-saxões dos anos 1970 do que das ocupações da cidade do Rio. Os integrantes são mais jovens do que os de outras ocupações. Seguem uma linha anarquista, porém mantêm o diálogo com as lideranças do movimento de luta pela moradia. Trata-se de um espaço que funciona como moradia, mas também é biblioteca, herbário, oficina de bicicletas, além de abrigar uma pequena agrofloresta e uma cozinha comunitária.

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